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Quero que me abraces sem me asfixiar
- em torno do referendo ao aborto -
Cativar é criar laços
Não há consciência de nós que não seja, ao mesmo tempo, consciência de um mundo habitado por outros. A consciência de nós aprofunda-se e experimenta-se na relação e no encontro com os outros. E os outros são irredutíveis, não existem apenas porque eu os pense. Existem por si, são diferentes, personalidades e características diferentes das minhas que fazem da abertura e da relação a aventura do crescimento. A célebre afirmação de que “inferno são os outros” só é verdade quando nós somos o nosso próprio inferno.
«O que quer dizer “cativar”?» é a grande interrogação do principezinho no seu diálogo com a raposa. Vale a pena ler novamente a história. É que a raposa vai explicando que «Cativar é criar laços … se me cativares precisaremos um do outro».
De facto, enquanto o principezinho metabolizava a sua dor (quase com pena de si mesmo) apareceu a raposa. Momentos antes o encontro com a flor não tinha corrido bem. A flor brincara vaidosamente fazendo tudo para se manter no meio da cena: uma espécie de jogo de sedução destinado a paralisar o admirador. E o pequeno príncipe, preso no jogo da flor, não se dava conta de si mesmo nem percebeu o que dissimulava tamanha simpatia. Amavam-se, pode concluir-se, mas nunca foram capazes de o dizer (José Gil, A profundidade e a superfície). E porque não encontraram as linguagens próprias o amor falhou. A flor usa a linguagem da astúcia enquanto o principezinho usa uma linguagem simples e directa. Não sendo realizáveis os desejos da flor, o principezinho está destinado a partir, a crescer. E é nessa procura de si mesmo por parte do principezinho que a raposa é um instrumento que possibilita uma experiência fundamental: criar laços, fazer de cada um para o outro alguém que é “único no mundo”. O aborrecimento desaparece da vida da raposa e o principezinho já não se sente estranho. Tornaram-se “únicos no mundo” um para o outro. Por isso a raposa conclui: “Tornaste-te responsável pelo que cativaste! És responsável pela tua rosa” (A. Saint-Exupéry, O Principezinho, 74). Diz-nos a mesma história que, pouco a pouco, cada um se começou a sentir responsável pelo outro e, ao mesmo tempo, a ver a vida própria com outros olhos.
Trata-se do mesmo sentir que Vergílio Ferreira afirma quando diz que «A pessoa que somos, e que parece evidente, aprende-se devagar. Quantas pessoas te amaram? E quantas pessoas amaste? O afecto é a melhor maneira de saberes o tamanho da tua vida. Ou seja, do até onde exististe. Haverá outro limite para saberes se valeu a pena?» (V. Ferreira, Pensar, 481. 471).
Quantas pessoas amaste?
Sem demagogias balofas e sendo sensível às imensas e inúmeras situações, por vezes dramáticas, a que uma mulher que se decide pelo aborto está sujeita (abandono, pressões várias, medos, falta de condições, etc, etc) gostava, neste contexto, de afirmar sensível e rigorosamente o direito à vida já existente e de, afirmar igualmente a não existência de direito sobre a vida do outro por mais embrionária que seja.
Não querendo passar por cima das dificuldades inerentes às razões que conduzem muitas mulheres a recorrer ao aborto, como se de coisas sem valor se tratasse, quero, no entanto, referir cada um desses aspectos como sendo de grandeza completamente diferente daquela que tem o valor da vida. A vida está antes como princípio, valor e fundamento, está durante como referência fundamental e experiência, e está depois como objectivo e finalidade de tudo. Tudo passa, só a vida permanece (quando permanece). E, na linha da igualdade dos direitos humanos, eu não posso tirar a ninguém algo que não tenho a capacidade de voltar a dar-lhe.
Contextualizar e reflectir esta questão no horizonte do amor e do afecto que, como diz V. Ferreira, mede o tamanho da nossa vida não é relegá-la para a utopia do irrealizável e falacioso. É colocá-la naquele horizonte das nossas vidas onde se decidem os rumos do viver, onde os desafios se fazem projectos, onde o ideal não é o abstracto mas aquilo que sempre nos segreda interiormente que é preciso continuar a educar. Não estamos sempre nós em desenvolvimento?! Se não acredito naquilo de que o homem é capaz quando se compromete gratuitamente como posso continuar a acreditar no homem?! E não estão sempre na base de qualquer Constituição de qualquer país um conjunto de valores que, embora difíceis, são os orientadores e os referentes de cada acção, de cada projecto?!
Para nós cristãos, todo o ser humano, e portanto também o embrião e o feto, possui o direito à vida imediatamente de Deus e, por isso, não existe autoridade humana que possa arrogar-se o direito de decidir sobre a vida de outro alguém. A afirmação do Decálogo “Não matarás” não é um passivo paliativo de consciência. É sempre entendido e levado à plenitude na experiência do amor fraterno. E, nesse sentido, todas as normas, todos os actos morais, todas as atitudes de vida estão, portanto referenciadas à opção fundamental perante um valor. Uma norma não vale por si mesma, mas expressa o valor e vale por isso em ordem ao comportamento. Positivas, motivadoras, abertas, orientadoras … eis como se deveriam apresentar as normas. São sempre instrumentais. Uma norma que permita arbitrariamente a destruição da vida humana é, no presente e em potência, um atropelo civilizacional, uma contradição dos valores éticos de cidadania que, embora nem sempre alcançados, construímos durante séculos. Ao aceitar – como norma, contexto ético e ambiente educativo – que se violem os direitos do mais fraco (“Eis o Homem” no dizer de Michel Serres citando o Evangelho de João), aceitar-se-á e colaborar-se-á, inequivocamente, que o direito da força se afirme sobre a força do direito.
O texto de um Assistente de Direito da Faculdade de Direito de Lisboa que recebi hoje por e-mail e que cito, afirma que «pouco se tem falado da solução da lei alemã como uma tentativa de resolver aquele aparente paradoxo ("como não punir a mulher, em muitos casos dramáticos, sem transformar o aborto num direito?", "como despenalizar sem liberalizar?"). O ponto principal dessa legislação, que a torna original no quadro europeu, consiste na existência de um mecanismo de aconselhamento e ajuda (que não é um mero aconselhamento informativo mas um aconselhamento orientado para a salvaguarda da vida e que visa dissuadir a mulher de praticar o aborto), definido, na própria lei (S. 219, nº 1, Código Penal Alemão), nos seguintes termos: " O aconselhamento serve a protecção da vida que está por nascer. Deve orientar‑se pelo esforço de encorajar a mulher a prosseguir a gravidez e de lhe abrir perspectivas para uma vida com a criança. Deve ajudá‑la a tomar uma decisão responsável e em consciência. A mulher deve ter a consciência de que o feto, em cada uma das fases de gravidez, também tem o direito próprio à vida e que, por isso, de acordo com o sistema legal, uma interrupção da gravidez apenas pode ser considerada em situações de excepção, quando a mulher fica sujeita a um sacrifício que pelo nascimento da criança é agravado e se torna tão pesado e extraordinário que ultrapassa o limite do que se lhe pode exigir ".
A lei alemã afasta-se, assim, do puro modelo do "aborto a pedido" (modelo da proposta em referendo), assumindo antes que, normalmente, será exigível à mulher o cumprimento do dever de levar a sua gravidez até ao fim, até ao nascimento do bébé. Normalmente, ser-lhe-á exigível cumprir o maravilhoso mas exigente fardo de levar a gravidez a termo.
Em contrapartida, é afirmada, por sua vez, a responsabilidade do Estado (e o mesmo se diga, aliás, da Sociedade em geral, das empresas, das famílias, etc) em criar as condições, em todos os domínios, que auxiliem a mulher a cumprir essa exigência.
Para além disso, no modelo da lei alemã, o aborto, mesmo nos casos em que, depois de realizado aquele aconselhamento dissuasor, é considerado não punível, sempre continua a ser tratado, para todos os efeitos jurídicos, como um acto ilícito (nomeadamente, para efeitos de não poder, assim, ser comparticipado pela Segurança Social, etc). Ou seja, o aborto continua a ser, nesses casos, ilegítimo, mas não punível.
Não sendo o ideal de modelo pode abrir perspectivas para um modelo de ajuda e aconselhamento dissuasor que não terminasse com uma decisão autónoma da mulher em quem, nesse momento, as condições de liberdade e autonomia até podem nem ser uma realidade por força das circunstâncias.
Santos pós-modernos pela vida
A cidadania é hoje um conceito e uma realidade bem complexas. Apela à participação, age na esfera da liberdade, pressupõe uma perspectiva participada da cultura, reenvia permanentemente aos valores e integra, no respeito mútuo e recíproco, imensas diferenças e múltiplas perspectivas. E como dinamismo fundamental acredita naquilo que alguém definiu como “somos todos pessoas a haver”. É uma cidadania que tende a incluir as diferenças para não se afirmar como exclusão.
Evidentemente que, nas sociedades actuais, o conceito de cidadania sendo valor comum nem por isso é simples de afirmar e colocar em curso. Não sendo fácil no mundo de hoje encontrar e definir uma base comum de valores éticos que sejam do acordo total, percebe-se ao mesmo tempo a impossibilidade da cidadania sem um referencial mínimo de valores. O único valor que parece não oferecer dúvidas é o da liberdade. Mas mesmo esse reenvia sempre para o encontro com o outro que é irredutível e nunca instrumentalizável. Confira-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem onde a vida é afirmada como pertencendo ao homem por natureza, que o Estado reconhece, mas não confere. Um direito que pertence a todos os homens enquanto seres humanos. Após a experiência dura e desumana da II Grande Guerra, entende-se que a vida não é algo de que se possa dispor arbitrariamente. Violar esse direito contradiz o ideal democrático.
O não reconhecimento do direito à vida, a incapacidade de promover a salvaguarda da vida do embrião e do feto, a neutralidade cómoda são expressões de um neo-conservadorismo emergente que tenta legalizar o que não se sabe enfrentar ou mesmo resolver.
Os valores da participação, do associativismo, da gratuidade do voluntariado, da pessoa que está permanentemente a fazer-se, dos desafios de realização tão presentes na defesa e difusão da ideia de cidadania não exigirão coerentemente que se acredite na capacidade e na possibilidade de educar para o valor da vida?! Como posso coerentemente afirmar as necessidades das atitudes de solidariedade humana, de respeito recíproco, de participação comunitária se todos esses valores ficarem fechados em si mesmos e não ajudarem o homem a transcentrar-se para se encontrar de verdade com os outros e o mundo percebendo a vida como o fundamento?! Seria possível descriminalizar sem legalizar. E as mulheres seriam ajudadas. Certamente daria muito trabalho, pediria muita liberdade, exigiria muito amor. O tal pelo qual se mede a nossa vida. Aqui a Igreja marca pontos. Porque dá o que tem: a alegria de amar. É por isso que vale mais optimizar todas as coisas do que ser apenas optimista.
P. Emanuel Matos Silva
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