terça-feira, julho 31, 2007










QUE (C)RER ?
- questões em torno da fé - 2 -



1. Sinais da abertura à questão de Deus

Sendo a fé , fundamentalmente, uma atitude de confiança, uma relação pessoal (crer), ela engloba igualmente a adesão a uma verdade revelada (aquilo em que se crê: Deus revelado em Jesus Cristo). O acto de confiar e o motivo da confiança constituem uma unidade. Creio em Deus, Pai Omnipotente ... e em Jesus Cristo, Filho Unigénito ... Salvador ..., e no Espírito Santo ... que dá a vida. De um ponto de vista formal, a fé é acolhimento da realidade de Deus e adesão à revelação que Deus faz de si.
Desta forma, a fé é um acto pessoal. E, nessa medida, encontra na própria pessoa algumas das condições da sua existência. Não se pode dizer tratarem-se de “provas da necessidade” da fé. Se assim fosse seria contraditório. Trata-se sim de algumas experiências humanas que são sinais da abertura do homem, em liberdade e enquanto homem, à questão de Deus. Significa que no próprio sujeito da fé – o homem - encontramos condições de aparecimento dessa mesma atitude cristã de fé.
As experiências que sinalizam a possibilidade da fé são, desta forma, aspectos fundamentais do ser homem na história. Correspondem a alguns dados que sinalizam a possibilidade, razoabilidade e sentido humanos da fé e que deixam entrever uma certa correspondência entre a procura humana de sentido e de plenitude, por um lado, e, por outro, a surpresa de Deus que Se revela ao homem. Novamente a questão do sentido da vida nos aparece como o lugar/contexto onde a questão de Deus se pode tornar decisiva para a vida do homem[1].
Um dos primeiros sinais da existência humana como abertura à questão de Deus acontece na experiência que a pessoa tem do corpo. Sendo a experiência e a expressão da existência pessoal ( não “temos” apenas um corpo, mas, sobretudo, “somos” o nosso corpo), visto que aí nos experimentamos a existir e exprimimos a nossa personalidade, o corpo é também a nossa experiência de inserção no mundo em que vivemos. É e significa a possibilidade de encontro, diálogo e comunhão. Mas é também a experiência da radical fragilidade, da limitação, da mortalidade. Daí que a experiência do corpo abra, muitas vezes, ao questionamento e à reflexão sobre o sentido último e final da vida e, em última análise, ao questionamento de Deus. Além disso o homem é sempre um ser histórico. A sua vida supõe e pressupõe decisões. Mas também o leva a fazer a experiência da provisoriedade.
Um segundo sinal de abertura do homem a Deus podemos lê-lo na necessidade humana de estabelecer relações de confiança e amor. No viver de cada dia o homem tem de confiar e está “dependente” da confiança. Aliás, muitas vezes, a afirmação de si próprio está dependente da afirmação, em confiança e amor, de outros. Porque o homem vive numa constante tensão entre “fechar-se em si próprio” ou “abrir-se aos outros”, confiar é uma experiência de desenvolvimento da sua personalidade. Será a confiança humana o último horizonte da confiança ou haverá uma confiança fundamental para lá de toda a imprevisibilidade das confianças humanas? Sendo a fé cristã, fundamentalmente, uma questão de confiança, a atitude de fé nunca é de todo estranha ao desenvolvimento da pessoa e à sua relação de amizade e amor com outras pessoas. E nessas relações pode ler-se a insuficiência de uma vida fechada sobre si mesma.
Um terceiro sinal é o da manifesta capacidade e vontade humanas de permanentemente se transcender. Pensar, querer, amar são actos fundamentais do ser pessoa e apontam para além de si mesmos, sinal de que o homem se supera a si mesmo e se abre ao infinito. Este é um sinal que se pode ver em diversos âmbitos: no âmbito do conhecimento e da busca da verdade (sempre mais além); no âmbito do amor (sempre mais verdadeiro); no âmbito da liberdade (o “para quê” da vida); no âmbito da consciência moral (o “porquê” e o “como” da vida); no âmbito do sentido da vida (razões e sentido mais profundos onde se fundamentam as decisões). Não estará nesta abertura e nesta procura o sinal da possibilidade da fé cristã ? É que a fé pode situar o homem no caminho da verdadeira realização dos seus anseios mais profundos.
Um quarto sinal de abertura a Deus é o que podemos ler no facto do homem ser, permanentemente, alguém em busca de libertação. Face às muitas ameaças diárias de sem-sentido (destruição pela solidão, confiança traída, incerteza, liberdade falhada, morte, etc), o homem sente o desejo da libertação.
Finalmente, um outro sinal de abertura do homem à questão de Deus, encontramo-lo na procura de sentido para a vida. Referindo-se a valores, e não a coisas neutras, o sentido da vida (e a sua procura) é o que melhor define a pessoa humana. E o homem sabe que a vida só tem sentido quando se dá sentido à vida, quando se lhe dão, precisamente, valores. O sentido só é reconhecido por quem está disposto a optar por ele, por quem está disposto a escolher valores como ideal de realização. Por definição, um valor não é uma coisa. É uma espécie de utopia sobre a maneira segundo a qual podemos e “devemos” viver. O que seria um homem totalmente desprovido de valores ? De facto, cada homem vive de um projecto de sentido[2]. É algo que interpela o homem quanto a valores fundamentais que definirão a orientação livre da vida numa tentativa de unificar e harmonizar a vida toda e de não a fazer apenas uma soma de momentos ou de acasos.
Não esgotando, de forma nenhuma, o horizonte de busca e de realização do homem, estes sinais são expressão da sua receptividade à revelação de Deus. Mais, são sinal da sua capacidade relacional com aquilo que à priori não controla nem define.
Crer é, portanto, entrar num diálogo. No caso do Cristianismo é um acto inter-pessoal de diálogo e relação com Jesus Cristo. É um acto de confiança. É, como dirá depois Sto. Agostinho, crer Deus (crer que Deus existe), crer a Deus (crer na sua Palavra) e crer em Deus ((entregar-se a Deus e confiar-Lhe o sentido da nossa vida).


P. Emanuel Matos Silva



[1] Cf. José Eduardo BORGES DE PINHO, Fé e Teologia – apontamentos para uso dos alunos (Lisboa: UCP) 26.
[2] Cf. Bernard SESBOÜÉ, Pensar e viver a fé no Terceiro Milénio (Coimbra: Gráfica, 2001) 47.

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