sexta-feira, dezembro 22, 2006



Natal

- da noite para o dia -


As luzes do Natal

Quando os dias se fazem mais curtos, quando os primeiros sinais de Inverno se fazem presentes, timidamente, silenciosamente despertam em nós os primeiros sentimentos e pensamentos de Natal. E desta simples palavra “Natal” brotam sentimentos tão numerosos e tão diferentes que, parece, nenhum coração humano lhe resiste.
Mesmo aqueles para quem a história da Criança que nasce em Belém não diz nada se prepararam para a festa e se interrogam sobre a forma como, nesta quadra, fazer acontecer o amor ao seu redor. Festa do amor e da alegria, o Natal é assim uma espécie de estrela de Inverno para a qual todos caminham e da qual todos partem.
Mas que estrela é essa? O que ilumina ela? E que representa?
Podíamos tentar aqui uma espécie de brincadeira. Imaginemos que neste momento todas as luzes se apagavam e que tínhamos de dizer quantas e quais a coisas que se encontravam na sala onde nos encontrássemos. Ou lembremo-nos do nosso levantar todos os dias pela manhã: qual é a primeira coisa que vemos? E porquê? Uns vêm o despertador (olhando … “vê-se” o tempo diante de nós); outros vêem a pessoa amada (olham e “vêem” o amor); outros vêm um qualquer objecto que tenham junto de si (o olhar marca uma proximidade), etc. Em qualquer caso o olhar que se detém em algo ou em alguém (uma realidade física) reenvia para algo não-físico (tempo, amor, fidelidade, compromisso).


Natal não é apenas um aniversário

Por tudo isto, o Natal não é apenas um aniversário. É sempre um acontecimento novo. É um nascimento. Aliás, nós somos sempre passado, presente e futuro. Ou, como dizia Sto Agostinho, somos o presente do passado e isso é a memória; somos o presente do presente, e isso é a visão; e somos o presente do futuro e isso é a esperança[1].
Natal é uma aparição de Deus entre os homens; é sim o nascimento de uma criança que só Deus podia dar ao mundo, uma criança nascida de uma mulher. Mas que vem de Deus e que vai ser no mundo a “narrativa” e a “explicação” de Deus
[2].
Então este nascimento não é uma metáfora; é sim uma realidade histórica que permanecerá como sinal. Um nascimento que é um sinal porque contém em si tudo aquilo que mais desejamos mas que precisa ser tocado por nós. É como que uma semente que só floresce em contacto com a atmosfera das nossas vidas. É por isso que o Natal não é um aniversário de algo passado e que tenha ficado preso nesse passado. Não! Natal é hoje!
“Hoje nasceu o nosso Salvador” diz s. Lucas. Dizer “Hoje nasceu” é um daqueles casos em que a nossa linguagem não se reduz a um comentário ao que acontece ou ao que fazemos, mas é sim um acção verdadeira. A linguagem do amor é sempre assim, a linguagem existencial é sempre assim.
Na nossa vida o presente (“Hoje”) tem, de facto, um valor imenso, fundamental e particular porque é o horizonte que nos permite tocar a vida na sua maior autenticidade e realidade. É o horizonte que nos permite relacionar a vida ao Bem, à Verdade que nos transcende, à Presença que nos alimenta.
Esta é uma daquelas dimensões da vida em que não dizemos o que fazemos (o tal comentário), mas antes fazemos o que dizemos. Ao dizermos estamos a permitir que se produzam efectivamente em nós os sentimentos que expressamos: uma verdadeira sintonia com o fundamento da realidade. Por isso cada momento é sempre o mesmo e é sempre novo.

Um povo que andava nas trevas viu uma luz

Os textos bíblicos de Isaías referem-se, profeticamente, ao Natal desta forma: O povo que andava nas trevas viu uma grande luz. Para aqueles que habitavam no país das trevas uma luz começou a brilhar (Is 9, 1).
O texto tem, evidentemente, um contexto histórico próprio e objectivo: o povo de Israel experimentou a deportação e o exílio, mas não se rendeu à desgraça, alimentou a esperança. Este é, contudo, um texto profético que continua a profetizar. Podemos ler este texto através do “Hoje” que transforma em “eterno presente” o seu dinamismo interno e a verdade que diz.
Biblicamente, as trevas são sempre sinal de desgraça, de opressão, de cativeiro ou mesmo de morte. Em sentido inverso a luz é sempre sinal de libertação, salvação, visão clara, conhecimento, discernimento, enfim sinal de verdade e de autenticidade.
Lido em retrospectiva este texto diz respeito à libertação de Israel do cativeiro da Babilónio, mas diz também respeito à esperança de uma felicidade mais profunda por parte de Israel. Qual foi a luz que Israel viu? A liberdade, sem dúvida. Mas também a sua esperança mais profunda realizada: “Encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoira” (Lc 2, 12) diz o Evangelho de Lucas. E é aqui que se vislumbra o sinal do Natal, a sua luz.
O sinal dado aos pastores naquela noite é um sinal extremamente simples, um sinal extremamente pobre. É um sinal que pertence à humanidade simples: uma criança nasce, mas na simplicidade e pobreza de um estábulo; uma criança nasce mas vê negada a hospitalidade.
Eis o sinal, a luz do natal. Tudo está aqui condensado. É uma criança pobre, uma criança simples que nasce: o Senhor e salvador, o Messias aguardado, é uma criança pobre, filho de pobres, nascido na pobreza
[3]. A Luz mais brilhante do Natal é, portanto, esta relação entre a pobreza e a glória, a relação entre a simplicidade e a glória. Como quem diz que a primeira e grande nota da solenidade é a sua simplicidade, a sua autenticidade, a sua verdade.
O início de uma vida de homem sobre a terra: é, talvez, esta simplicidade a razão da universalidade da mensagem do Natal: esta criança viverá a maior parte da sua vida no meio dos homens do seu tempo; passará pelo mundo fazendo o bem ; realizando sinais ligados às necessidades dos homens, realiza a relação e comunhão dos homens com Deus e dos homens entre si: pão e vinho multiplicados, saúde reecontrada, natureza e homem reconciliados, fraternidade restabelecida, a vida e o amor reafirmados como mais fortes que a morte.
E será a vivência quotidiana de tudo isto que fará com que seja reconhecido como Filho de Deus.


Vida entregue a Cristo: da noite para o dia

“Hoje nasceu o nosso Salvador”. O “Hoje” do nosso Natal é, portanto, o hoje deste encontro entre cada um de nós e a verdade desta criança. Nós não celebramos hoje Natal como há dois mil anos. Celebramo-lo com a Criança já inteiramente revelada. O Natal faz apelo a toda a vida, a todas as palavras de Jesus Cristo, a todas as suas acções, a todos os seus gestos. E o “Hoje” do Natal é o momento do encontro com essa simplicidade da verdade e da autenticidade.
Como a vida da humanidade seria diferente se a simplicidade do Natal se expandisse pelas vidas de todos e cada um. Simplicidade que significa descomplicar a vida do dia a dia; simplicidade que significa aquela nossa fome natural de sentido, de segurança e de afecto; simplicidade que significa autenticidade sem representações.
O “Hoje” do Natal é trazer á nossa vida cada modo de agir, cada modo de pensar, cada modo de resolver a vida que Jesus assumiu. De facto, o que seria a nossa vida e a vida de toda a humanidade, as nossas relações, os nossos confrontos, se lhes conseguíssemos juntar aquele amor que dá tudo e se entrega todo que vimos acontecer em Jesus de Nazaré?! E se lhe copiássemos essa forma livre e autêntica de ser e de estar?!
As luzes do nosso Natal são a expressão da ânsia dessa luminosidade. São símbolos dos desejos interiores que ainda não conseguimos realizar. Queremos estar iluminados por dentro e para não nos esquecermos acendemos as luzes fora como que a dizer-nos: que bom será o mundo quando for Natal! De facto, aquela criança fez-se homem para nos ensinar a viver no mundo (Tt 2, 11 – 12).
No hemisfério norte os símbolos naturais são extremamente forte neste período. E os primeiros cristãos integraram-nos na sua vivência. Todos os anos os cristãos, como todos os seus concidadãos, reparavam que a partir do equinócio do Outono se acentuava progressivamente o declínio da luz: as noites são cada vez maiores e os dias cada vez mais pequenos. No momento do solstício de Inverno a situação inverte-se e a luz do dia começa a conquistar tempo sobre a noite: os dias começam a crescer e as noites a ficar mais pequenas. No calendário juliano, o solstício de Inverno acontecia por 25 de Dezembro. E os cristãos começaram a celebrar aí Natal: Jesus, cada Palavra sua, cada gesto seu, cada acção sua é a Luz, o novo Sol da justiça e da verdade: por causa daquela criança e existencialmente, a luz afirma-se sobre a escuridão, efectiva-se uma passagem das trevas para a luz, uma passagem, enfim, da noite para o dia! E é isso o Natal: da noite para o dia!

P. Emanuel Matos Silva

[1] SANTO AGOSTINHO, Confissões XI, 21, 26.
[2] Cf. Enzo BIANCHI, Donner sens au temps (Paris: Bayard, s/d) 19.
[3] Cf. Enzo BIANCHI, op. cit.