quinta-feira, dezembro 28, 2006

Natal


Um conto de MIGUEL TORGA


De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possí­veis par se aproximar da terra. A necessidade levara-o lon­ge de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favore­ça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desco­nhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma cô­dea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.
E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusa­das se o mundo fosse doutra maneira. Muito embora trou­xesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de ma­nhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-Ihes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansa­do. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa co­meçou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta, passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não ha­via outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade:, com o coração a refilar. Aflito, batia-Ihe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Ti­vesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coi­sa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-Ihe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lu­crava nada! Chamavam-lhe fiIósofo ... Areias, queriam di­zer. Importava-Ihe lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadi­ga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermi­da. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão des­coberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da ca­pela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou al­guma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião de­vida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e ten­tou acendê-Ias. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fós­foros todos, é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha to­lhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aque­la ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino Filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
- Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem sa­ber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arru­mado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evi­dentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o cober­to, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, er­gueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
- É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino tam­bém.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, diri­giu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pe­queno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de São José.


« O Cristianismo vive do que poderíamos chamar um fundamental optimismo metafísico ao mesmo tempo que de um realismo histórico. O primeiro funda-se na fé, na criação, no Deus que fez surgir toda a realidade, que declarou muito bom tudo quanto tinha feito e que constituiu o homem senhor de tudo o resto e responsável de si, imagem do seu próprio ser, e com capacidade de chegar a ser semelhante a Ele, com uma semelhança que será fruto de uma liberdade acreditada no tempo. No princípio estão a vida, a liberdade e a história aberta. No princípio estão a palavra criadora de Deus, a acção animadora e sustentadora do espírito sobre a face informe do mundo. No princípio não está a morte, nem o pecado, nem a confusão da liberdade na incomunicação dos homens entre si *.

O. Qonzález de Cardedal


«O homem só existe como pessoa, e, por isso, não em elevada distância, fechada solidão ou afrontamento indiferente, mas em abertura e relação.
O que diferencia as coisas das pessoas é que aquelas são e estão condenadas à autonomia, quer dizer, à incomunicação e solidão, enquanto as pessoas estão destinadas à relação, à existência interdependente, a uma liberdade que não nasce face ou contra o próximo, mas da aceitação, oferta e acolhimento do outro, igualmente livre e soberano »

O. Qonzález de Cardedal




Jesus

Era uma história de amor …
(Portanto uma história de dor!
De sofrimento e de gemidos!
De silêncio e de esquecimento!
E de procura e de perda
De imolação e de perdão,
De agonia e de morte!)
Era uma história de amor.

J. A. Carmenes

quarta-feira, dezembro 27, 2006




« Os homens, no começo, sentiram alguma dificuldade em acostumar-se a Deus. Deus, no começo, sentiu alguma dificuldade em acostumar-se aos homens. E no século treze ainda se está no começo. No século vinte não estamos mais longe, não fizemos outra coisa senão marcar passo, atolando-nos um pouco mais nesse furor em espelho de Deus e dos homens, conforme nos dão testemunho a poeira dos nossos sapatos e o sangue em crosta nos nossos lindos fatos.
Francisco de Assis conhece Isaías […] conhece bem a Bíblia […] A voz de Deus está na Bíblia sob toneladas de tinta, como a energia concentrada sob toneladas de betão numa central atómica. O jovem de Assis foi irradiado por esta voz. Já nada mais quer senão transmiti-la […].

Há algo no mundo que resiste ao mundo, e este algo não se acha nas igrejas nem nas culturas nem no pensamento que os homens têm de si próprios, na crença mortífera que eles têm de si próprios enquanto seres sérios, adultos, razoáveis, e este algo não é uma coisa, mas Deus, e Deus não pode caber em nada sem logo o abalar, o arrasar, e Deus imenso não sabe caber senão nos estribilhos de infância, no sangue perdido dos pobres ou na voz dos simples, e todos esses abarcam Deus no côncavo das suas mãos abertas, um pardal encharcado como pão pela chuva, um pardal transido, chilreador, um Deus pipilante que vem comer nas suas mãos nuas.
Deus é o que sabem as crianças, não os adultos. Um adulto não pode perder tempo a alimentar os pardais».

Christian BOBIN, Um Deus à flor da Terra, 98