domingo, março 23, 2008


Páscoa em silêncio


Do Mistério Pascal nunca se diz o suficiente. Mistério Pascal não é apenas uma ideia, uma doutrina ou uma espécie de lei ou instituição. O Mistério Pascal tem o seu núcleo na Pessoa de Jesus Cristo, morto e ressuscitado. É como nos diz o Papa Bento XVI, no início da fé não está uma teoria ou uma decisão ética, mas um encontro com uma Pessoa, Jesus Cristo.

Deus diz-Se no silêncio e não desperdiça palavras. Deus repara em cada palavra que diz porque cada palavra sua tem o rosto de seu Filho. Filho que os homens não escutaram e conduziram à morte. De igual forma, as palavras ditas por Deus não são palavras ligeiras, mas são o próprio Filho, a Palavra. Cada palavra, portanto, e mais ainda a Palavra, é portadora do amor relacional de Deus, o Amor no qual o homem se faz filho no Filho.

A vida de Deus está rodeada de silêncio - Deus gera o Filho no silêncio, e o Espírito Santo, como relação de amor entre ambos, é expressão também de silêncio. Podemos, portanto, dizer que o silêncio rodeia o Mistério de Deus. “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1, 1). Esse Verbo foi-se revelando ao homens. Por isso podemos dizer que era um “mistério envolto em silêncio” (Rom 16, 25) até se revelar aos homens.

O silêncio é, de facto, uma afirmação global na História da Salvação. Deus diz-Se no silêncio e, de um Deus assim, não se pode nunca dizer tudo senão em silêncio. O silêncio surge aí como respeitador da condição de Deus e da condição do homem. E se existe o silêncio de Deus, ou em Deus, existe também o silêncio do homem, para quem há “um tempo para calar e um tempo para falar” (Ecl 3,7).

Muitas passagens do Antigo Testamento relacionam o silêncio com o recto uso da palavra (Prov 10, 6-32; 12. 18; Eclo 19, 7-12; 20, 1-7) ou então convidam a evitar a inconstância das palavras (Eclo 5, 9-15) e os pecados da língua ( Eclo 23, 7-15; 28, 13-26). Além disso foi no murmúrio suave da brisa que Deus se revelou ao profeta (1 Reis 19, 12).

O silêncio, no Antigo Testamento, é ainda a expressão reverencial do respeito do homem por Deus[1]. Diante de Deus, por parte do homem, o silêncio pode traduzir a vergonha do pecado (Jó 40, 4; 42, 6) ou pode traduzir a confiança na salvação (Ex 14, 14). Em outras ocasiões, contudo, não falar seria falta de fortaleza e de fé em Deus.

No Novo Testamento há, da mesma forma, imensas alusões ao silêncio. E também, de igual forma, silêncio de Deus e em Deus e silêncio do homem. A Carta de S. Tiago, por exemplo, convida o homem cristão ao domínio ascético da língua. É um convite ao silêncio do coração, face aos julgamentos e aos ciúmes, às afeições desordenadas (Tg 4, 8.10). O silêncio é aí um importante meio para aprender a viver com os irmãos.

Mas as expressões mais importantes de silêncio do Novo Testamento são aquelas que dizem respeito ao próprio Jesus Cristo que muitas vezes condena as más palavras que saem da boca e procedem do coração. Cristo alerta para a necessidade da vigilância nas palavras sem fundamento (Mt 15, 19; 12, 36).

Além disso reparemos nos silêncios que envolvem o próprio Mistério de Cristo na Sagrada Escritura. É o silêncio da Encarnação que, enquanto Palavra do Pai dita num tempo, se ouve e se percebe no silêncio. É o silêncio da consciência messiânica de Cristo, é o silêncio final.
Logo de início, aos silêncios do nascimento de Cristo sucedem os silêncios da sua adolescência. Jesus crescia em estatura e em graça. A sua presença na Sagrada Escritura é uma presença silenciosa.

Depois, durante o seu ministério, Jesus acolhe a Palavra do Pai e deixa-se constantemente instruir por ela. E nessa medida recorre muitas vezes à experiência do recolhimento em silêncio. Ao mesmo tempo o ministério público de Jesus é também pautado por certas recusas de respostas. São silêncios extremamente comunicativos, por vezes cheios de ironia, mas também de firmeza (“Também não vos responderei” Mt 21, 27).

Em seguida encontramo-nos com os silêncios da Paixão e da Cruz de Jesus. São silêncios com uma densidade particular na medida em que acontecem num momento privilegiado da Revelação[2]. Não se trata apenas de uma densidade suspensiva, mas da densidade do que está a acontecer. As horas da Paixão, Morte e Ressurreição são embebidas num impressionante silêncio onde o que sobressai é o profundo, supremo e incondicional amor de Jesus onde a acção de Jesus não se resume apenas a um compromisso caritativo ou filantrópico, mas é sim de ordem essencialmente teológica e sacrificial.

Sendo o Filho, Jesus é também homem-para-os-outros e este é um ser que se exprime num autêntico silêncio. Este é um silêncio que não diz resignação nem desespero. É antes um silêncio todo oração, todo revelação, todo contemplação, um silêncio que é amor presente e a acontecer. Um silêncio todo ele redenção.

De facto, na Cruz, evidencia-se a plena unidade de vontade do Pai e do Filho, o que revela a Cruz como um Mistério de Amor e que, por isso, realiza a Salvação. O Pai entrega o Filho na Cruz, o Filho é entregue e entrega-Se a si mesmo, e o Espírito permanece como ligação da temporalidade da morte de Cristo à eternidade vivificante do Pai. Aquilo que identifica a acção do Pai é o acto de entregar o Filho: entrega-O na Encarnação e entrega-O na Cruz no acontecimento da Redenção; entrega-O gerando-O continuamente no mundo. E nesta contínua geração o Filho é Deus com o Pai desde toda a eternidade e também agora no despojamento quenótico.

A entrega do Filho na Cruz é também uma auto-entrega. Essa é a expressão radical da sua obediência de Amor ao Pai, uma entrega que, como acto livre de Jesus, manifesta a plenitude da sua filiação divina.
Há, pois, um silêncio que envolve o Mistério de Deus, silêncio esse que, na contínua relação trinitária se afirma como amor. E o amor é silencioso.
Após o silêncio da Cruz, deparamo-nos com o silêncio do túmulo. É um túmulo silencioso. O silêncio da morte é um silêncio imenso. Rompe-se o diálogo e a sua capacidade de ligar e religar, entra em si mesmo, aquele que se ama não responderá jamais.

Mas a grande novidade da fé cristã está na afirmação da Ressurreição. À luz da Ressurreição toda a vida de Cristo é interpretada com um outro horizonte de fé. Como se pudéssemos dizer que a Ressurreição confirma as palavras, os gestos, as acções de Jesus. Da mesma forma, à luz da Ressurreição, o silêncio do sepulcro revela-se um silêncio fecundo e pleno de ensinamento[3]. É um silêncio que ensina a esperança. No silêncio do sepulcro trabalha o Amor do Pai e do Filho, o Amor de Deus que não permitiu a vitória da morte. Jesus Cristo recebe-Se do Pai nesta continuidade do Amor que Lhe dá vida. Por isso, fazendo a experiência da morte, Ele destrói a própria morte e abre a todos os homens, na sua liberdade, a vida eterna. Este é, sem dúvida, um Mistério de silêncio a ser contemplado também no silêncio.

Neste sentido podemos afirmar a própria Ressurreição como um Mistério de silêncio bem como as aparições de Jesus aos discípulos. Há uma dimensão interior comum a todos estes acontecimentos - a dimensão da fé - que, não os relativizando, intensifica a sua significação. É no silêncio que se repara bem na passagem da palavra.

É precisamente no coração do silêncio que, por exemplo, os discípulos passam do desconhecimento ao conhecimento de Jesus. Assim, no episódio de Emaús (Lc 24, 31), os discípulos “reconheceram-n’O ao partir do pão”. Esta é uma confirmação da fé que surge para lá das palavras e dos actos. Surge no arder do coração. O Espírito de Jesus Ressuscitado é silencioso, discrição silenciosa essa que lhe vem da relação com o Pai, do conhecimento íntimo que tem d’Ele e do seu Amor[4]. O Espírito interioriza, no mais profundo dos corações dos homens, a experiência de Jesus de Nazaré como uma experiência filial. No Filho, o homem se torna filho de Deus. É o silêncio do encontro, contemplativo e activo.

O Verbo de Deus ouve-se, portanto, num contexto de silêncio onde sobressai como a Palavra por excelência entre as palavras, a Sabedoria evidente entre as sagezas diversas. E o próprio silêncio é aí o veículo-linguagem sem o qual não haveria percepção nem entendimento. Não acontecia a relação porque não havia revelação.


p. Emanuel Matos Silva


[1] Cf. Giovanna della CROCE, Silencio, in Ermanno ANCILLI, Diccionario de Espiritualidad (Barcelona: Herder, 1987) 390.

[2] Cf. Philippe FERLAY, Dieu dans le silence (Paris: Desclée, 1986) 47.
[3] Cf. ibid.
[4] Cf. ibid.