quinta-feira, agosto 31, 2006

Jesus Cristo
- Homem Novo para renovar o homem -
- III -


3. 3.3. Conto-vos uma história que é a vossa
- O ensino através das parábolas -
Em toda esta relação ocupa grande destaque a parábola, uma história que Jesus conta em que cada ouvinte é convidado a reconhecer-se como um dos personagens intervenientes. Muitas parábolas farão referência à história de Israel como Povo e não apenas (literalmente) a um homem particular. Fundamentalmente a parábola é um convite dirigido à liberdade de quem a ouve. Por exemplo: seremos o filho mais novo ou filho mais velho da parábola do filho pródigo? Seremos o fariseu ou o publicano da parábola sobre a oração? Etc.
À luz das ciências da linguagem, o que é uma parábola? Fundamentalmente trata-se de uma história fictícia, que tem a ver com a realidade concreta do contador ou autor da parábola, com o fim de apresentar uma mensagem. Em qualquer parábola há um termo de comparação entre a realidade da história parabólica e a realidade da mensagem do autor da mesma parábola. Neste sentido semelhança e parábola são coisas diferentes. A semelhança aponta para uma situação típica, enquanto a parábola apresenta um caso singular interessante. A semelhança refere-se ao universalmente válido, enquanto a parábola se refere ao que acontece uma vez embora como caso típico.

É muito difícil estudar as parábolas de Jesus ou encontrarmo-nos com as parábolas originais tais como Jesus a disse. Uma coisa pode ter sido a que Jesus disse e outra a que, depois, e pela tradição oral, mais tarde, foi posta por escrito.
Por isso as parábolas de Jesus têm de ser estudadas em três dimensões: a dimensão primigénia de Jesus frente aos seus interlocutores; a dimensão evangélica, dos evangelistas que as escreveram; a dimensão actual e eclesial das parábolas.

Mas o que pretende Jesus com as parábolas? Jesus apareceu como alguém que anuncia a presença do reino de Deus. O que Jesus pede aos seus ouvintes e interlocutores é que acreditem nessa presença do Reino. Mas os Judeus em geral esperavam outras evidências da presença do Reino. É nesta relação de dificuldade na aceitação do Reino presente em Jesus Cristo que surgem as parábolas. E é este contexto que as influenciará quanto ao seu conteúdo.

Vejamos, por exemplo, a parábola do semeador (Mc 4, 1-9). O que é que Jesus quer dizer com esta história de um camponês que saiu a semear e cuja semente lançada cai em sítios rochosos, no meio dos espinhos, nas pedras, nos caminhos e uma pequena parte apenas é que cai em boa terra? Possivelmente Jesus está num contexto de fracasso: a semente, na sua maior parte perdeu-se, diz a parábola. Os seus interlocutores ao ouvi-l’O falar sobre o Reino não o acolhem e esperam que o reino se realize mas segundo as modalidades em que o esperam. Por isso também Jesus lhes lembra, citando, o profeta Isaías (“Os cegos vêem, os coxos andam ...” Mt 11, 5; Is 35, 5). E igualmente por isso lhes diz “O tempo chegou ao seu termo e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos” (Mc 1, 15). Significa que os seus ouvintes têm de começar a entender as coisas de outra forma.

Qual é o grande desafio de Jesus ? O desafio de Jesus diz respeito a uma viragem completa na forma de entender a realidade. Até Jesus os Judeus tinham o conhecimento da Lei e das tradições à volta da Lei. Mas a partir de Jesus o conhecimento teria de ser diferente. Por isso Jesus lhes diz que têm de conhecer o amor do Pai pela presença do amor do Filho Jesus. Então o que era preciso reformar era a concepção religiosa, teológica e institucional de todo o processo humano e judaico.

Peguemos por exemplo na parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25). O próximo daquele homem assaltado é um samaritano e não sacerdote ou levita. No sistema religioso da época só era próximo quem pertencia à raça de Abraão. Para os judeus os próximos eram judeus. Os fariseus, por exemplo, excluiam dos seus próximos os que ignoravam a Lei ... etc.
Jesus, neste caso, vai inverter os termos destas relações e vai apresentar um samaritano como próximo de um judeu sabendo que os samaritanos eram odiados por todos os judeus. E ao apresentar o samaritano como próximo volta-se para o doutor da Lei e diz-lhe que faça o mesmo. Então um doutor da Lei tinha de ser como um samaritano ? Ora é neste “confronto” que consiste a revolução teológica de Jesus. Tudo tinha de mudar.O próximo não era aquilo que eles pensavam . A revolução aqui não é tanto moral, mas sim teológica: o Deus anunciado por Jesus é diferente daquele em que muitos acreditavam.

Outro exemplo é a parábola do fariseu e do publicano (Lc 18, 9) que vão rezar ao Templo. São duas atitudes completamente diferentes. A novidade de Jesus aqui consiste em afirmar o pecador (publicano) completamente perdoado. O que perdoa é a relação do pecador frente a Deus e não frente à Lei (como é o fariseu que cumpre tudo e até faz o que não é obrigado). O publicano é um pecador segundo a Lei e o fariseu um justo. Mas segundo Jesus o publicano é um justo. E isto porque o perdão não depende da Lei mas da relação de amor e verdade a Deus. Por isso o fariseu é justo segundo a Lei, mas pecador segundo Jesus e nova forma por Ele apresentada. Então o que é que é importante: a Lei ou a Graça ?

Vemos portanto que Jesus estabelece uma revolução teológica: chegou o tempo do grande encontro com Deus não apenas segundo a Lei, mas sim segundo a Graça.

4. Faz como eu faço
- Jesus: o dizer e o fazer como testemunho duma existência -
Chegados a este momento da vida de Jesus podemos perguntar-nos o que é que dava credibilidade às suas parábolas. Os ouvintes de Jesus, segundo os Evangelhos, reconheceram nas suas palavras uma autoridade diferente da dos escribas e fariseus. E, por outro lado, a parábola como estilo literário podia ser utilizado pelos piores proponentes de utopias irrealizáveis.
O que distinguia então as parábolas de Jesus, as suas palavras entre tantas outras palavras? Na resposta a esta questão, tocamos a própria originalidade de Jesus: a coerência entre a proclamação anunciada e o testemunho de vida é total. Jesus não ensinou nada que não tivesse praticado também. Em Jesus coincidem o dizer e o fazer. E será isso que definirá a sua existência.
Neste contexto é particularmente relevante a atitude de Jesus para com os pecadores, a sua proximidade com eles. Não são os que têm saúde que precisam de médico (Lc 5, 31-32) dirá Jesus, mas os que estão doentes. O pecador público era alguém de quem, segundo a lei judaica, era necessário afastar-se e, no entanto, Jesus aproxima-se deles. A sua proximidade com os pecadores não é, evidentemente, um compromisso e, muito menos, uma cumplicidade com o pecado. Se aqueles que são manifestamente pecadores são privilegiados por Jesus é porque mostram um desejo de mudar de vida. E àqueles que muito amaram muitos se lhes perdoará.

É precisamente neste contexto do anúncio do Reino dos Céus que os milagres de cura de Jesus ganham sentido. Os milagres são sinais e anúncios reais da salvação. E, nesse sentido, estão ligados à mensagem da chegada do Reino de Deus em Jesus Cristo.

Os evangelistas colocam na própria boca de Jesus o significado que é preciso dar aos seus milagres. Aos enviados de João que Lhe perguntam se é Ele Aquele que estava para vir, Jesus responde citando um texto de Isaías que insiste na transformação da pessoa pela saúde: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a Boa Nova é anunciada aos pobres” (Lc 7, 22-24). os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a Boa Nova é anunciada aos pobres” (Lc 7, 22-24).

O sinal evangélico da cura é, pois, muito importante para exprimir a natureza do Reino que Jesus vem anunciar.
Esta e outras passagens do Evangelho mostram-nos, no contexto do anúncio do Reino, o que Jesus convidou os discípulos de João a ver e a ouvir.
Se relacionarmos com esta acção de Jesus o despertar da consciência de que Jesus é o Messias, estabeleceremos imediatamente uma relação entre Jesus e a alegria. Jesus não vem apenas mudar uma parcela da realidade. Vem mudar tudo. Vem mudar o mais profundo do homem: a vontade, a inteligência, a afectividade (o amor).

O Deus do Reino que Jesus anuncia é, portanto, um Deus amigo dos homens. Por isso se manifesta que este Reino é Reino para os homens, para as pessoas humanas... É uma nova ordem de coisas, totalmente diferente.
Os pobres e os aflitos são os privilegiados deste Reino. Mas os pobres e os aflitos são, fundamentalmente, aqueles que já não têm nada a esperar do mundo ... os que já não têm mais recursos nenhuns ... senão Deus ... só Deus lhes pode valer. São aqueles que não encontram resposta aos seus problemas apenas nas estruturas do mundo ... os que não têm defesas neste mundo. Pobres são os oprimidos ... os desesperados ... por qualquer razão. Não terá então isso algo a ver com a verdadeiras alegrias, aquelas que não se confundem com estados anímicos passageiros, mas têm a ver com o sentido da vida encontrado.

A pobreza e a doença são aqui símbolo e manifestação de uma carência ... de uma necessidade, de uma indigência: o homem deixado entregue a si mesmo, abandonado no mundo, é um ser votado à morte. Fome ... sede ... visão ... são os sentidos da relação humana e da expressão dessa relação, são as formas e os caminhos das relações do homem com os outros ... são por eles que se realizam e expressam as vivências humanas. Então o desejo de viver é aqui a matriz do sentido. E quem se sente recuperado não tem motivo para a alegria ?

“E todos os que O tocavam ficavam curados” diz o Evangelho de Marcos (Mc 6, 53). É um dos testemunhos do Evangelho. A palavra “cura” é uma palavra tremendamente evocadora e significativa para falarmos de Jesus como acontecimento global que integra uma multiplicidade de experiências que se afirmam como vidas com sentido. Tocar Jesus, como diz o Evangelho, é estabelecer inter-relação com o mistério da sua pessoa.

Ao estudar, por exemplo, os milagres de Jesus é importante conhecer a identidade das pessoas que são curadas por Jesus. Nelas não está apenas uma doença pessoal e singular. Elas próprias encarnam uma característica comum da sociedade de então que é a exclusão.

O judaísmo, e no tempo de Jesus era assim, tinha estabelecido uma estreita relação entre doença, impureza e pecado. As próprias leis religiosas que regem os povos foram carregando de significado social e sacral todas as doenças. As doenças sofridas não são, então, muitas vezes, entendidas como disfunções orgânicas (doenças físicas), mas como desvios das normas em uso e dos valores dominantes.

Neste sentido, os corpos doridos ou sofredores e tristes de alguém são o sinal patente de uma transgressão que ameaça o bom funcionamento de toda a sociedade, o corpo social do qual se faz parte. Por isso os doentes – os pecadores, os transgressores – são excluídos. Suplicar e pedir a cura não é mais, então, do que pedir se volte a encher de sentido a vida de alguém (esse que pede).
É Jesus Quem aceita esse desafio e devolverá a saúde, a integridade e o sentido de vida a todos aqueles com quem se encontra.

As curas são, pois, o primeiro sinal da chegada da novidade. A cura do corpo e o perdão dos pecados indicam que é o homem todo (a totalidade do nosso ser) que é curado, que é salvo. Nós não temos apenas um corpo, mas somos um corpo. E tudo o que afecta o corpo que somos nos afecta a nós próprios. Os sinais da cura e do perdão mostram então o avanço do Reino na medida em que são sinais de esperança. A doença tem uma relação com a morte. A cura, face à morte, é sinal da promessa da ressurreição. Jesus mostra-nos assim como o corpo, a pessoa, é o espaço e o tempo da sua acção. Cada pessoa, pela encarnação de Cristo, é um espaço e tempo, é ocasião, de graça.

Outro sinal muito importante nos Evangelhos é o sinal da refeição. Jesus alimenta as multidões: assume-se aqui toda a simbologia da refeição. Alimento não é apenas o pão, mas tudo aquilo de que o homem tem necessidade para viver e viver bem. Por isso Jesus multiplica o alimento. Porque Ele próprio é essa abundância de sentido, de alimento. E as refeições com Jesus são, por isso, sempre sinal da comunhão no Reino, para lá da morte.

quarta-feira, agosto 30, 2006


Jesus Cristo
- Homem Novo para renovar o homem -


Introdução
- O real, o que se vê e quem vê -
O “real” de uma pessoa, de qualquer pessoa, supera sempre aquilo que qualquer observador a partir do exterior possa captar ou perceber, adjectivar ou idealizar dessa mesma pessoa. Se isto é verdade com qualquer pessoa, também é verdade com a Pessoa de Jesus Cristo. De facto, bem diz o povo que quem o feio ama, bonito lhe parece.

Nos escritos mais antigos do Novo Testamento o nome próprio “Jesus“ anda sempre associado a outros conceitos que dão origem a expressões como Jesus Cristo, o Senhor Jesus, Jesus Cristo nosso Senhor. As pessoas que utilizam esta terminologia não se referem apenas a um homem do passado cuja recordação seria preciso manter, mas referem-se sim a uma pessoa viva e actuante com a qual se pode entrar em relação. Trata-se, evidentemente de uma perspectiva crente, uma perspectiva de fé. É o “Cristo da fé”.
Ao “Cristo da fé” pode contrapor-se, sem se opor, o “Jesus da história”. Nesta segunda expressão pretendeu-se e pretende-se ver uma manifestação da historicidade de uma pessoa: dizer “não há dúvida que Jesus existiu”.
O nome “Jesus” significa, de facto, “Deus salva”, mas naquela época, como testemunha o historiador Flávio Josefo em alguns dos seus textos, Jesus era um homem a viver no meio de um povo. Mas, por isso mesmo, nessas condições, é possível olhar para a personagem Jesus na sua singularidade individual.

Considerando que ao longo dos tempos se foi enriquecendo muito o retrato de Jesus a Quem os cristãos reconhecem como Cristo e Senhor, sublinha-se a necessidade de ter acesso e voltar ao Jesus “real”. É isso que a expressão “Jesus da história” pretende sublinhar. O “Jesus da história” designa o que o historiador, utilizando os métodos próprios e trabalhando a partir das fontes fragmentárias de que dispõe, pode e consegue reconstruir da personagem “Jesus de Nazaré”.

A distinção entre “Cristo da fé” e “Jesus da história” é válida, mas não tem de funcionar em termos de oposição. E se hoje, por um lado, parece impossível escrever uma biografia de Jesus, contudo, por outro lado, a investigação permite destacar as grandes linhas ou vectores do seu ensino, pregação e actividade; permite constatar a existência de uma tensão séria e objectiva com as concepções fundamentais do judaísmo da época e dos círculos dirigentes do povo; permite discernir a tensão que conduziria à morte violenta de Jesus.

1. Eu, eu, eu…, mas nunca “só eu…”
– Os níveis de acesso à existência pessoal de Jesus Cristo -
A partir de Jesus Cristo, o encontro de Deus com a humanidade e da humanidade com Deus passa sempre pela história do homem. Deus deixa-se encontrar como Salvador e Messias em Jesus Cristo na história dos homens. Esse é o fundamento verdadeiro da alegria cristã.
Mas, para podermos compreender melhor Jesus de Nazaré e o seu significado na história da humanidade podemos, seguindo o teólogo González Cardedal, distinguir três níveis de acesso à sua existência pessoal[1].

1.1. Os Factos: conhecimento histórico científico
Neste primeiro nível estamos na presença de todos aqueles acontecimentos, situações, comportamentos, personagens, lugares e tempos que constituem o entrançado da vida do homem Jesus desde o nascimento até à morte. Trata-se de fixar todos estes dados nas suas coordenadas espácio-temporais, de determinar todos os elementos que os constituem e de perceber a sua função e repercussão. Trata-se, fundamentalmente, de tentar saber com a maior exactidão possível como é que aconteceram as coisas independentemente do significado que mais tarde tenham recebido e/ou assumido. O acesso à Pessoa de Jesus Cristo, neste nível, faz-se por um tipo de conhecimento e método histórico-científico[2].

1.2. O Sentido: conhecimento histórico-sapiencial
O segundo nível de acesso à existência de Jesus, segundo o mesmo Gonzalez Cardedal, é aquele que implica toda a sua auto-compreensão humana. Estando subjacente a tudo o que Jesus fazia (cada uma das suas palavras e acções) era o que lhes dava sentido e visibilidade no mundo. Não se trata já então dos factos ou simples acontecimentos, mas sim, antes de mais, do nível profundo da intencionalidade que os animava. É neste nível que todas as figuras de relevo histórico (homens e situações) aparecem como portadoras de um significado e sentido (que pode ser universal). Neste nível já não nos basta sermos observadores dos factos, mas é necessário empenhar todo o existir para poder entender em que medida o viver de Jesus é resposta aos anseios, esperanças e possibilidades do homem. Este é um nível que se baseia necessariamente no anterior, mas que o ultrapassa. Podemos chamar-lhe então um conhecimento do tipo histórico-sapiencial.

1.3. A Revelação: conhecimento religioso-crente
Um terceiro e último nível de acesso à existência pessoal de Jesus Cristo remete-nos para elementos da vida de Jesus que vão bem mais longe que os anteriores. De facto, se nos momentos anteriores nos encontrávamos ao nível da facticidade e da exemplaridade, aqui estamos já ao nível da transcendência, ao nível da fé. Trata-se então de procurar conhecer não já apenas aqueles elementos que nos remetem para o testemunho humano da vida de Jesus (factos ou intenções, contextos ou comportamentos humanos iluminadores de novas possibilidades de existência radicadas já no coração do homem), mas sim todos aqueles elementos que revelam o projecto de Deus para a humanidade. É que, dito de outra forma, em Jesus não estão apenas presentes factores de exemplaridade mas existe algo qualitativamente novo, uma presença especial de Deus que acontece como Dom para a humanidade. A pergunta aqui já não é então sobre o que fez ou como se compreendeu Jesus a si mesmo, mas sim sobre o que é que Deus fez em Jesus e através d’Ele para a humanidade[3].
Evidentemente que neste momento estamos já ao nível da fé. Já não estamos apenas ao nível da exterioridade dos factos, mas estamos ao nível na iluminação consentida do sujeito que vive e contempla esses factos para que possa perceber neles a revelação de Deus, ou seja, sentir os factos como destinados por alguém pessoal a alguém pessoal em ordem à instauração de uma relação também pessoal. Revelação, portanto, só acontece quando coincidem o aspecto objectivo (presença manifestativa) e o aspecto subjectivo (acção iluminadora de Deus no sujeito para que este veja e possa perceber o chamamento de Deus à fé). Evidentemente, aqui estamos já ao nível do assentimento religioso-crente (a fé).

2. Quem não distingue confunde e distinguir não é separar
– A relação entre os três níveis de acesso à existência de Cristo -
Estes três níveis de realidade descritos, apesar de serem vistos em simultaneidade, são autónomos entre si e não se podem desvalorizar uns a partir do outros. Aos factos responde-se com uma análise histórico-empírica; à existência responde-se com uma compreensão que pretende interpretar e que, a partir de uma empatia gerada, é capaz de reconhecer valor e exemplaridade; e à presença reveladora de Deus só se pode responder com a fé.
Apesar de relacionados entre si, estes são três níveis qualitativamente distintos. Porém, e isso é claro para o autor citado, o homem só pode encontrar-se verdadeiramente com a pessoa de Jesus quando aceita percorrer a totalidade do caminho que permite o seu acesso: o Cristianismo só é verdadeiramente fé em Jesus na medida em que Jesus é o Cristo. A fé dos cristãos, portanto, é sempre fé em Jesus Cristo[4]. E isto porque o encontro com Deus não se dá apenas no encontro com as obras, com a doutrina, com o destino, ou com a preocupação fundamental que dominou a vida de Jesus, mas acontece naquela realidade que já não é protagonizada apenas pelo mesmo Jesus, mas sim por Deus: a ressurreição. Possivelmente sem ressurreição teria existido apenas um “jesuanismo” de carácter profético, mas não teria surgido um cristianismo.
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[1] Cf. Olegário Gonzalez CARDEDAL, Jesus de Nazaret (Madrid: BAC, 1993) 361.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid. 368.

Jesus Cristo
- Homem Novo para renovar o homem -
- II-


3. Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és
- Do Jesus pré-pascal ao Cristo pascal -
Sem respondermos previamente à questão, devemos, sem dúvida, afirmar desde já que a ressurreição de Jesus e a experiência pascal dos discípulos são os elementos determinantes na origem da fé cristã. Antes da ressurreição de Jesus, os discípulos não tinham ainda compreendido bem o real significado da sua pessoa e obra. Tinham elementos que lhes permitiam reconhecer em Jesus um Profeta da plenitude da vida e dos tempos, um Profeta do Reino de Deus, mas não tinham os elementos que lhes permitiam reconhecer o Cristo, Ungido de Deus. Isto não quer dizer que os discípulos não tivessem ainda fé na sua pessoa porque se não a tivessem não O tinham seguido. Contudo, sobressai em vários episódios do Evangelho (Disc. Emaús, Lc 24, 21; Tomé, Jo 20, 28; Mãe dos filhos de Zebedeu, Mc 10, 37, etc) que só depois da ressurreição de Jesus é que os discípulos chegaram a uma compreensão mais aprofundada e a uma fé mais profunda na Pessoa de Jesus Cristo, Messias e Filho de Deus. A ressurreição não se pode, contudo, reduzir a uma experiência pascal de conversão dos discípulos. Sem dúvida que os discípulos fizeram a experiência da conversão (subjectiva), mas fizeram-na porque re-encontraram Jesus ressuscitado como sendo o que havia sido morto. E isso significa que a ressurreição afecta em primeiro lugar o próprio Jesus Cristo. Esta transformação da humanidade de Jesus (assim que passa da vida à morte e da morte à vida) não pode ser percebida pelos discípulos senão em relação à esperança de plenitude de Israel, ou seja, como transformação d’Aquele que há-de vir, para lá da morte, na plenitude dos tempos.

Nesta medida, o facto de que a ressurreição e a experiência pascal dos discípulos marcaram o nascimento da sua fé em Cristo, não quer dizer que a ressurreição de Jesus seja suficiente, por si mesma, para provar ou para testemunhar a identidade pessoal do Ressuscitado enquanto Filho de Deus. A identidade pessoal de Jesus é objecto de fé – não se presta a nenhuma demonstração. O que existem são sinais capazes de suscitar e de manter a fé. Sem esses sinais, de facto, os discípulos não teriam, provavelmente, podido perceber a real transformação acontecida na humanidade de Jesus.
Esses sinais, como é o caso das aparições, mostravam que Jesus tinha atingido, para lá da morte, a plenitude esperada. Desta forma os discípulos eram constantemente re-enviados ao testemunho de Jesus durante a sua vida terrena. Fortalecidos pelo Espírito eles vão relembrar tudo o que Jesus tinha dito e feito (o Jesus pré-pascal). É desta forma que a memória do Jesus histórico desempenha um papel fundamental no nascimento da fé cristológica dos discípulos. O que aconteceu, fundamentalmente, é que a memória do Jesus histórico forneceu aos discípulos a ligação entre Jesus (ele próprio) e a interpretação de fé dada após a ressurreição[1].

Mas mudemos um pouco de registo e tentemos ver a pedagogia de Jesus na sua maneira de se apresentar e conduzir ao reconhecimento da sua identidade. Entremos no relato evangélico como se fossemos os seus companheiros e deixemo-l’O agir em nós da mesma forma que agiu nos contemporâneos de Jesus. Veremos então se Ele é capaz de nos seduzir (Jer 20, 7).
Jesus entrou na história dos homens como homem. Como chegaram então os seus discípulos à fé na sua pessoa e a proclamá-l’O Cristo e Senhor ? Como é que os cristãos de todos os tempos chegaram à afirmação da identidade divina, transcendente e misteriosa, do homem Jesus ? Como é que o comportamento humano de Jesus revela que Ele é mais do que um simples homem ? Por outras palavras, por onde começar a estudar a Cristologia[2] ?
Na resposta a todas estas questões trata-se de passar pela afirmação de que Jesus é verdadeiramente homem para chegar à afirmação de que Ele é verdadeiramente Deus (afirmação de uma outra ordem totalmente diferente). Ora o reconhecimento divino de Jesus escapa àquilo que, normalmente, chamamos de provas históricas. Isto quer dizer que nós não podemos encontrar Deus no fim de um caminho que, de prova em prova, O forçasse a manifestar-Se-nos. O modo de relação do homem com Deus é um modo pessoal. É o modo do encontro e da experiência – é a pessoa livre que se compromete.

3.1. Alguns aspectos históricos
- E foi assim… -
Aspecto histórico é, por exemplo, o facto de que por volta do ano 30 da nossa era, um homem chamado Jesus começou a pregar na Galileia. Não era sacerdote, e não pertencia a nenhum outro dos grupos existentes na sua época. Não tinha estudos, era um carpinteiro que aprendera a arte com seu pai. Existem alguns testemunhos, poucos, sobre a existência histórica de Jesus seja em autores pagãos seja em autores judaicos, seja mesmo em termos de arqueologia.
Mas existem outros elementos a somar a estes: o seu nascimento ter-se-ia dado em Belém, mas terá vivido quase sempre em Nazaré; a sua vida teria sido, no entanto, uma vida itinerante. Fez-Se baptizar no Jordão por João Baptista, andou pela Galileia (Nazaré e Cafarnaum) e depois na Judeia; a partir de certa altura rodeia-se de um grupo de 12 homens e de outras pessoas que começam a andar sempre com Ele; vai regularmente a Jerusalém (pela Páscoa, por exemplo); inicia, a certa altura a sua pregação sobre o Reino de Deus. Falou em Sinagogas, mas preferia os espaços abertos livres (o monte, a praia, a praça das povoações); faz-Se próximo dos mais pobres e aflitos, dos doentes e desesperados; ensina sobretudo através de histórias comparativas a que chamamos parábolas; morreu crucificado.

3. 2. A vida não se resume ao que se faz na vida
- Para lá dos aspectos históricos, a personalidade de Jesus -
A procura histórica não se pode limitar aos aspectos cronológicos, geográficos e exteriores da existência de Jesus. Podemos, de facto, remontar às grandes afirmações da sua mensagem.
Olhemos a personalidade de Jesus. Por exemplo, a atitude de Jesus face ao Templo e à Lei Judaica é paradoxal: por um lado Ele respeita um certo número de prescrições, mas por outro enfrenta abertamente questões como a do Sábado. Poderíamos então dizer que, fundamentalmente, Jesus retoma a polémica dos profetas do AT contra uma observância rigorista da Lei quando não está acompanhada de justiça, de misericórdia, do amor de Deus e do próximo. É nesse sentido que Jesus redefine a paisagem legal em Israel: o Sábado é para o homem e não o homem para o Sábado. E fá-lo relativizando certas observâncias e colocando no centro da vida os mandamentos essenciais do amor a Deus e ao próximo.
Mas existem outros elementos bem expressivos. Quando Jesus fala da Lei, Ele não fala como um escriba ou fariseu que propõe comentários. Jesus coloca-se em verdadeira igualdade com a Lei: “Ouvistes que foi dito aos antigos ... Eu, porém, digo-vos”. Esta é, aliás, uma pretensão que levantará objectivamente problemas e nos ajudará a entender as reacções dos ouvintes.
Outro caso é o perdão dos pecados (Mt 9, 1-9; Lc 5, 17). Numa cultura que afirmava que só Deus pode perdoar os pecados, aparecer alguém que diz perdoar os pecados ganha o tom acusatório de blasfémia (Mc 2, 7).
E como auge de todos estes elementos temos a sua forma de relação com Deus a Quem chama de Pai (Mt 11, 27). Por tudo isto, o próprio Jesus começará a dar conta de que o seu destino será violento como o dos grandes profetas ... até à morte[3].

3. 3. Jesus apresenta-Se ao Povo de Israel
- A Mensagem de Jesus -
Desde que Jesus aparece entre os Judeus, Jesus fala. E aquela que é tida no Evangelho de Marcos como a sua primeira palavra tem uma tem uma força extraordinária: Cumpriu-se o tempo, o Reino de Deus está próximo: convertei-vos e acreditai na Boa-Nova (Mc 1, 15).
O apelo à conversão não será uma realidade propriamente nova. Já João Baptista tinha anunciado essa necessidade.
A novidade da pregação de Jesus é o conceito de Boa-Nova e o anúncio de que o Reino chegou. O que Jesus fará é dar expressão a este Reino que chegou. Na sua palavra e no seu gesto caracteriza-se o Reino. O Reino de Deus caracteriza um estado perfeitamente reconciliado e pacífico da sociedade humana; manifesta a reconciliação dos homens entre si e com Deus; manifesta a alegria de ver realizada a mais profunda aspiração humana. É um Reino de paz, mas duma paz que exige a justiça, a verdade, a autenticidade.
É por isso que a pregação de Jesus acerca do Reino de Deus é terrivelmente reformadora em relação à tradição e costumes judaicos do seu tempo. Jesus fala de um Reino que não é como os reinos dos homens. Mas esse era um Reino que não correspondia minimamente às expectativas dos Judeus: ... Jesus ignorava o poder político ... Jesus ignorava o poder das armas ... Jesus ignorava o poder do dinheiro e da sedução...Jesus diz que o Reino vem de maneira discreta e silenciosa, no coração de cada pessoa ... Jesus fala do perdão dos pecados ...Jesus cura e alivia o sofrimento de imensas pessoas ... Jesus chama Pai a Deus (inconcebível para os Judeus) e diz que a autoridade do seu ministério Lhe vem de ser o Filho de Deus ... Jesus declara-Se contra a forma como os Judeus se comportam no Templo ou face à Lei. Ele vem cumpri-la na sua plenitude (a plenitude do seu entendimento).
A característica fundamental deste Reino anunciado por Jesus é que ele se apresenta como Dom de Deus aos homens. É Deus Quem Se coloca ao serviço do homem porque a glória de Deus é o homem vivo.

3. 3.1. O mal e o bem ao rosto vêm
- O Reino no Sermão da Montanha (Mt 5, 1 – 7, 28) -
O Evangelho de S. Mateus agrupa em três capítulos o ensinamento inaugural de Jesus sob a forma de um grande discurso – o Sermão da Montanha. E neste discurso o Reino de Deus é descrito de forma verdadeiramente paradoxal: a sua descrição é aberta com a proclamação das oito Bem-aventuranças, oito promessas de alegria que parecem ser uma contra-corrente em relação às alegrias meramente humanas. Não só a doçura, a fome de justiça, a misericórdia, a pureza de coração e as obras de paz são ditas bem-aventuradas mas também a pobreza, as lágrimas e até a injusta perseguição. Não que os sofrimentos sejam um bem em si mesmos, mas manifestam o tempo necessário para que o Reino se instaure.
As exigências das Bem-aventuranças reportam-se ao decálogo de Moisés, mas vão bem mais longe. Não basta, passivamente, não matar, é preciso amar[4]. É necessário que cada um se reconcilie com o seu adversário e que não cometa adultério nem de corpo nem de coração. É preciso abrir-se à Lei nova do amor e deixar a lei de talião amando os próprios inimigos. A esmola e a oração serão tão verdadeiras quanto discretas – rezar-se-á no segredo e ensinado pela própria relação de Jesus com o Pai. Acerca do Jejum, Jesus diz também que não se deve mostrar como evidente só para ser visto. O jejum necessário é o de ter em Deus o centro da vida. De certa forma este é o programa global do reino que Jesus apresenta. Cumprir tudo isto levará, sem dúvida, a conflitos. É um discurso que chama à justiça, à rectidão, à caridade.

3. 3.2. Os Romanos “ loucos” e os “Simpáticos” Judeus
- A criação de um mundo simbólico
como expressão de sintonia entre Jesus e os seus ouvintes –
Qual é o efeito das palavras de Jesus nos seus ouvintes? Podemos dizer que as palavras de Jesus atingem a profundidade existencial dos seus ouvintes. As palavras de Jesus revelam a verdade dos seus ouvintes a si mesmos (são palavras esclarecedoras do sentido da vida do próprio homem, têm a ver com a vida real, com a verdade do ser homem, ser pessoa): revelam o homem ao próprio homem na medida em que se dirigem ao seu desejo de viver, ao seu desejo de justiça, de alegria, de liberdade. São palavras reveladoras da esperança humana de que as coisas possam sempre mudar para melhor.

Estas palavras de Jesus criam, portanto, entre Jesus e a multidão que O escuta um mundo simbólico, ou seja um mundo – comunhão – no qual se manifesta um conjunto de sinais anunciadores do Reino. É como se aqueles que seguem Jesus vissem o Reino de Deus em representação.
Mas a sequência directa dos textos e da acção de Jesus mostrará que o Reino ainda não está realizado e que será difícil de construir. A pregação de Jesus em Nazaré, na Sinagoga, é uma outra forma de exprimir a novidade que acompanha a vinda do seu Reino: O Espírito do Senhor está sobre mim porque Ele me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres, enviou-Me a proclamar a libertação aos cativos, e aos cegos a vista; a libertar os oprimidos, e a proclamar um ano da graça do Senhor. Hoje cumpriu-se esta Escritura (Lc 4, 16-30).
Jesus anuncia que a promessa inscrita no texto de Isaías se cumpre na sua pessoa. E, de facto, o programa anunciado é o conteúdo do Reino que Jesus prega: preocupação com os mais pobres; libertação das injustiças; cura dos enfermos; proclamação de um tempo de graça (Jubileu: perdão das dívidas, restituição das propriedades, libertação dos escravos).
Por isso a pregação de Jesus culmina sempre no “convertei-vos”. “Converter-se” é “multiplicar-se” no bem e na construção da felicidade.
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[1] Cf. Jacques DUPUIS, Homme de Dieu, Dieu des hommes (Paris: Cerf, 1995).
[2] Cf. Bernard SESBOUÉ, Croire (Paris: Droguet & Ardent, 1999) 249.
[3] Cf. Bernard SESBOUÉ, op. cit. 237.
[4] Cf. Ibid.

domingo, agosto 27, 2006


Porquê "Provocação 33" ...?

Ninguém se faz o que é sozinho e isolado. Muitas e muitas relações e inter-relações ajudam na nossa construção. São provocações da própria vida, dos outros, das circunstâncias que nos vão desafiando e ajudando a construir a vida. Ao sabor da corrente ou contra a corrente. Vida todos temos e essa é a primeira circunstância e vocação com que nos deparamos: que fazer com o facto que nos acontece de estarmos vivos?! E uma pergunta é já uma provocação que ajudará a definir uma vocação. Interrogamo-nos "pro vocação"! Provocação 33 porque Cristo é, pela palavra e pelo gesto, pelo mistério da Encarnação, a maior provocação possível ao sentido da vida do homem. Quem escolher dar o coração a Jesus Cristo percebe o seu sentido de vida como fazer com a existência própria aquilo que Jesus fez com a sua vida: dar-se, amar, entregar-se.