quarta-feira, agosto 30, 2006


Jesus Cristo
- Homem Novo para renovar o homem -
- II-


3. Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és
- Do Jesus pré-pascal ao Cristo pascal -
Sem respondermos previamente à questão, devemos, sem dúvida, afirmar desde já que a ressurreição de Jesus e a experiência pascal dos discípulos são os elementos determinantes na origem da fé cristã. Antes da ressurreição de Jesus, os discípulos não tinham ainda compreendido bem o real significado da sua pessoa e obra. Tinham elementos que lhes permitiam reconhecer em Jesus um Profeta da plenitude da vida e dos tempos, um Profeta do Reino de Deus, mas não tinham os elementos que lhes permitiam reconhecer o Cristo, Ungido de Deus. Isto não quer dizer que os discípulos não tivessem ainda fé na sua pessoa porque se não a tivessem não O tinham seguido. Contudo, sobressai em vários episódios do Evangelho (Disc. Emaús, Lc 24, 21; Tomé, Jo 20, 28; Mãe dos filhos de Zebedeu, Mc 10, 37, etc) que só depois da ressurreição de Jesus é que os discípulos chegaram a uma compreensão mais aprofundada e a uma fé mais profunda na Pessoa de Jesus Cristo, Messias e Filho de Deus. A ressurreição não se pode, contudo, reduzir a uma experiência pascal de conversão dos discípulos. Sem dúvida que os discípulos fizeram a experiência da conversão (subjectiva), mas fizeram-na porque re-encontraram Jesus ressuscitado como sendo o que havia sido morto. E isso significa que a ressurreição afecta em primeiro lugar o próprio Jesus Cristo. Esta transformação da humanidade de Jesus (assim que passa da vida à morte e da morte à vida) não pode ser percebida pelos discípulos senão em relação à esperança de plenitude de Israel, ou seja, como transformação d’Aquele que há-de vir, para lá da morte, na plenitude dos tempos.

Nesta medida, o facto de que a ressurreição e a experiência pascal dos discípulos marcaram o nascimento da sua fé em Cristo, não quer dizer que a ressurreição de Jesus seja suficiente, por si mesma, para provar ou para testemunhar a identidade pessoal do Ressuscitado enquanto Filho de Deus. A identidade pessoal de Jesus é objecto de fé – não se presta a nenhuma demonstração. O que existem são sinais capazes de suscitar e de manter a fé. Sem esses sinais, de facto, os discípulos não teriam, provavelmente, podido perceber a real transformação acontecida na humanidade de Jesus.
Esses sinais, como é o caso das aparições, mostravam que Jesus tinha atingido, para lá da morte, a plenitude esperada. Desta forma os discípulos eram constantemente re-enviados ao testemunho de Jesus durante a sua vida terrena. Fortalecidos pelo Espírito eles vão relembrar tudo o que Jesus tinha dito e feito (o Jesus pré-pascal). É desta forma que a memória do Jesus histórico desempenha um papel fundamental no nascimento da fé cristológica dos discípulos. O que aconteceu, fundamentalmente, é que a memória do Jesus histórico forneceu aos discípulos a ligação entre Jesus (ele próprio) e a interpretação de fé dada após a ressurreição[1].

Mas mudemos um pouco de registo e tentemos ver a pedagogia de Jesus na sua maneira de se apresentar e conduzir ao reconhecimento da sua identidade. Entremos no relato evangélico como se fossemos os seus companheiros e deixemo-l’O agir em nós da mesma forma que agiu nos contemporâneos de Jesus. Veremos então se Ele é capaz de nos seduzir (Jer 20, 7).
Jesus entrou na história dos homens como homem. Como chegaram então os seus discípulos à fé na sua pessoa e a proclamá-l’O Cristo e Senhor ? Como é que os cristãos de todos os tempos chegaram à afirmação da identidade divina, transcendente e misteriosa, do homem Jesus ? Como é que o comportamento humano de Jesus revela que Ele é mais do que um simples homem ? Por outras palavras, por onde começar a estudar a Cristologia[2] ?
Na resposta a todas estas questões trata-se de passar pela afirmação de que Jesus é verdadeiramente homem para chegar à afirmação de que Ele é verdadeiramente Deus (afirmação de uma outra ordem totalmente diferente). Ora o reconhecimento divino de Jesus escapa àquilo que, normalmente, chamamos de provas históricas. Isto quer dizer que nós não podemos encontrar Deus no fim de um caminho que, de prova em prova, O forçasse a manifestar-Se-nos. O modo de relação do homem com Deus é um modo pessoal. É o modo do encontro e da experiência – é a pessoa livre que se compromete.

3.1. Alguns aspectos históricos
- E foi assim… -
Aspecto histórico é, por exemplo, o facto de que por volta do ano 30 da nossa era, um homem chamado Jesus começou a pregar na Galileia. Não era sacerdote, e não pertencia a nenhum outro dos grupos existentes na sua época. Não tinha estudos, era um carpinteiro que aprendera a arte com seu pai. Existem alguns testemunhos, poucos, sobre a existência histórica de Jesus seja em autores pagãos seja em autores judaicos, seja mesmo em termos de arqueologia.
Mas existem outros elementos a somar a estes: o seu nascimento ter-se-ia dado em Belém, mas terá vivido quase sempre em Nazaré; a sua vida teria sido, no entanto, uma vida itinerante. Fez-Se baptizar no Jordão por João Baptista, andou pela Galileia (Nazaré e Cafarnaum) e depois na Judeia; a partir de certa altura rodeia-se de um grupo de 12 homens e de outras pessoas que começam a andar sempre com Ele; vai regularmente a Jerusalém (pela Páscoa, por exemplo); inicia, a certa altura a sua pregação sobre o Reino de Deus. Falou em Sinagogas, mas preferia os espaços abertos livres (o monte, a praia, a praça das povoações); faz-Se próximo dos mais pobres e aflitos, dos doentes e desesperados; ensina sobretudo através de histórias comparativas a que chamamos parábolas; morreu crucificado.

3. 2. A vida não se resume ao que se faz na vida
- Para lá dos aspectos históricos, a personalidade de Jesus -
A procura histórica não se pode limitar aos aspectos cronológicos, geográficos e exteriores da existência de Jesus. Podemos, de facto, remontar às grandes afirmações da sua mensagem.
Olhemos a personalidade de Jesus. Por exemplo, a atitude de Jesus face ao Templo e à Lei Judaica é paradoxal: por um lado Ele respeita um certo número de prescrições, mas por outro enfrenta abertamente questões como a do Sábado. Poderíamos então dizer que, fundamentalmente, Jesus retoma a polémica dos profetas do AT contra uma observância rigorista da Lei quando não está acompanhada de justiça, de misericórdia, do amor de Deus e do próximo. É nesse sentido que Jesus redefine a paisagem legal em Israel: o Sábado é para o homem e não o homem para o Sábado. E fá-lo relativizando certas observâncias e colocando no centro da vida os mandamentos essenciais do amor a Deus e ao próximo.
Mas existem outros elementos bem expressivos. Quando Jesus fala da Lei, Ele não fala como um escriba ou fariseu que propõe comentários. Jesus coloca-se em verdadeira igualdade com a Lei: “Ouvistes que foi dito aos antigos ... Eu, porém, digo-vos”. Esta é, aliás, uma pretensão que levantará objectivamente problemas e nos ajudará a entender as reacções dos ouvintes.
Outro caso é o perdão dos pecados (Mt 9, 1-9; Lc 5, 17). Numa cultura que afirmava que só Deus pode perdoar os pecados, aparecer alguém que diz perdoar os pecados ganha o tom acusatório de blasfémia (Mc 2, 7).
E como auge de todos estes elementos temos a sua forma de relação com Deus a Quem chama de Pai (Mt 11, 27). Por tudo isto, o próprio Jesus começará a dar conta de que o seu destino será violento como o dos grandes profetas ... até à morte[3].

3. 3. Jesus apresenta-Se ao Povo de Israel
- A Mensagem de Jesus -
Desde que Jesus aparece entre os Judeus, Jesus fala. E aquela que é tida no Evangelho de Marcos como a sua primeira palavra tem uma tem uma força extraordinária: Cumpriu-se o tempo, o Reino de Deus está próximo: convertei-vos e acreditai na Boa-Nova (Mc 1, 15).
O apelo à conversão não será uma realidade propriamente nova. Já João Baptista tinha anunciado essa necessidade.
A novidade da pregação de Jesus é o conceito de Boa-Nova e o anúncio de que o Reino chegou. O que Jesus fará é dar expressão a este Reino que chegou. Na sua palavra e no seu gesto caracteriza-se o Reino. O Reino de Deus caracteriza um estado perfeitamente reconciliado e pacífico da sociedade humana; manifesta a reconciliação dos homens entre si e com Deus; manifesta a alegria de ver realizada a mais profunda aspiração humana. É um Reino de paz, mas duma paz que exige a justiça, a verdade, a autenticidade.
É por isso que a pregação de Jesus acerca do Reino de Deus é terrivelmente reformadora em relação à tradição e costumes judaicos do seu tempo. Jesus fala de um Reino que não é como os reinos dos homens. Mas esse era um Reino que não correspondia minimamente às expectativas dos Judeus: ... Jesus ignorava o poder político ... Jesus ignorava o poder das armas ... Jesus ignorava o poder do dinheiro e da sedução...Jesus diz que o Reino vem de maneira discreta e silenciosa, no coração de cada pessoa ... Jesus fala do perdão dos pecados ...Jesus cura e alivia o sofrimento de imensas pessoas ... Jesus chama Pai a Deus (inconcebível para os Judeus) e diz que a autoridade do seu ministério Lhe vem de ser o Filho de Deus ... Jesus declara-Se contra a forma como os Judeus se comportam no Templo ou face à Lei. Ele vem cumpri-la na sua plenitude (a plenitude do seu entendimento).
A característica fundamental deste Reino anunciado por Jesus é que ele se apresenta como Dom de Deus aos homens. É Deus Quem Se coloca ao serviço do homem porque a glória de Deus é o homem vivo.

3. 3.1. O mal e o bem ao rosto vêm
- O Reino no Sermão da Montanha (Mt 5, 1 – 7, 28) -
O Evangelho de S. Mateus agrupa em três capítulos o ensinamento inaugural de Jesus sob a forma de um grande discurso – o Sermão da Montanha. E neste discurso o Reino de Deus é descrito de forma verdadeiramente paradoxal: a sua descrição é aberta com a proclamação das oito Bem-aventuranças, oito promessas de alegria que parecem ser uma contra-corrente em relação às alegrias meramente humanas. Não só a doçura, a fome de justiça, a misericórdia, a pureza de coração e as obras de paz são ditas bem-aventuradas mas também a pobreza, as lágrimas e até a injusta perseguição. Não que os sofrimentos sejam um bem em si mesmos, mas manifestam o tempo necessário para que o Reino se instaure.
As exigências das Bem-aventuranças reportam-se ao decálogo de Moisés, mas vão bem mais longe. Não basta, passivamente, não matar, é preciso amar[4]. É necessário que cada um se reconcilie com o seu adversário e que não cometa adultério nem de corpo nem de coração. É preciso abrir-se à Lei nova do amor e deixar a lei de talião amando os próprios inimigos. A esmola e a oração serão tão verdadeiras quanto discretas – rezar-se-á no segredo e ensinado pela própria relação de Jesus com o Pai. Acerca do Jejum, Jesus diz também que não se deve mostrar como evidente só para ser visto. O jejum necessário é o de ter em Deus o centro da vida. De certa forma este é o programa global do reino que Jesus apresenta. Cumprir tudo isto levará, sem dúvida, a conflitos. É um discurso que chama à justiça, à rectidão, à caridade.

3. 3.2. Os Romanos “ loucos” e os “Simpáticos” Judeus
- A criação de um mundo simbólico
como expressão de sintonia entre Jesus e os seus ouvintes –
Qual é o efeito das palavras de Jesus nos seus ouvintes? Podemos dizer que as palavras de Jesus atingem a profundidade existencial dos seus ouvintes. As palavras de Jesus revelam a verdade dos seus ouvintes a si mesmos (são palavras esclarecedoras do sentido da vida do próprio homem, têm a ver com a vida real, com a verdade do ser homem, ser pessoa): revelam o homem ao próprio homem na medida em que se dirigem ao seu desejo de viver, ao seu desejo de justiça, de alegria, de liberdade. São palavras reveladoras da esperança humana de que as coisas possam sempre mudar para melhor.

Estas palavras de Jesus criam, portanto, entre Jesus e a multidão que O escuta um mundo simbólico, ou seja um mundo – comunhão – no qual se manifesta um conjunto de sinais anunciadores do Reino. É como se aqueles que seguem Jesus vissem o Reino de Deus em representação.
Mas a sequência directa dos textos e da acção de Jesus mostrará que o Reino ainda não está realizado e que será difícil de construir. A pregação de Jesus em Nazaré, na Sinagoga, é uma outra forma de exprimir a novidade que acompanha a vinda do seu Reino: O Espírito do Senhor está sobre mim porque Ele me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres, enviou-Me a proclamar a libertação aos cativos, e aos cegos a vista; a libertar os oprimidos, e a proclamar um ano da graça do Senhor. Hoje cumpriu-se esta Escritura (Lc 4, 16-30).
Jesus anuncia que a promessa inscrita no texto de Isaías se cumpre na sua pessoa. E, de facto, o programa anunciado é o conteúdo do Reino que Jesus prega: preocupação com os mais pobres; libertação das injustiças; cura dos enfermos; proclamação de um tempo de graça (Jubileu: perdão das dívidas, restituição das propriedades, libertação dos escravos).
Por isso a pregação de Jesus culmina sempre no “convertei-vos”. “Converter-se” é “multiplicar-se” no bem e na construção da felicidade.
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[1] Cf. Jacques DUPUIS, Homme de Dieu, Dieu des hommes (Paris: Cerf, 1995).
[2] Cf. Bernard SESBOUÉ, Croire (Paris: Droguet & Ardent, 1999) 249.
[3] Cf. Bernard SESBOUÉ, op. cit. 237.
[4] Cf. Ibid.

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