quarta-feira, agosto 30, 2006


Jesus Cristo
- Homem Novo para renovar o homem -


Introdução
- O real, o que se vê e quem vê -
O “real” de uma pessoa, de qualquer pessoa, supera sempre aquilo que qualquer observador a partir do exterior possa captar ou perceber, adjectivar ou idealizar dessa mesma pessoa. Se isto é verdade com qualquer pessoa, também é verdade com a Pessoa de Jesus Cristo. De facto, bem diz o povo que quem o feio ama, bonito lhe parece.

Nos escritos mais antigos do Novo Testamento o nome próprio “Jesus“ anda sempre associado a outros conceitos que dão origem a expressões como Jesus Cristo, o Senhor Jesus, Jesus Cristo nosso Senhor. As pessoas que utilizam esta terminologia não se referem apenas a um homem do passado cuja recordação seria preciso manter, mas referem-se sim a uma pessoa viva e actuante com a qual se pode entrar em relação. Trata-se, evidentemente de uma perspectiva crente, uma perspectiva de fé. É o “Cristo da fé”.
Ao “Cristo da fé” pode contrapor-se, sem se opor, o “Jesus da história”. Nesta segunda expressão pretendeu-se e pretende-se ver uma manifestação da historicidade de uma pessoa: dizer “não há dúvida que Jesus existiu”.
O nome “Jesus” significa, de facto, “Deus salva”, mas naquela época, como testemunha o historiador Flávio Josefo em alguns dos seus textos, Jesus era um homem a viver no meio de um povo. Mas, por isso mesmo, nessas condições, é possível olhar para a personagem Jesus na sua singularidade individual.

Considerando que ao longo dos tempos se foi enriquecendo muito o retrato de Jesus a Quem os cristãos reconhecem como Cristo e Senhor, sublinha-se a necessidade de ter acesso e voltar ao Jesus “real”. É isso que a expressão “Jesus da história” pretende sublinhar. O “Jesus da história” designa o que o historiador, utilizando os métodos próprios e trabalhando a partir das fontes fragmentárias de que dispõe, pode e consegue reconstruir da personagem “Jesus de Nazaré”.

A distinção entre “Cristo da fé” e “Jesus da história” é válida, mas não tem de funcionar em termos de oposição. E se hoje, por um lado, parece impossível escrever uma biografia de Jesus, contudo, por outro lado, a investigação permite destacar as grandes linhas ou vectores do seu ensino, pregação e actividade; permite constatar a existência de uma tensão séria e objectiva com as concepções fundamentais do judaísmo da época e dos círculos dirigentes do povo; permite discernir a tensão que conduziria à morte violenta de Jesus.

1. Eu, eu, eu…, mas nunca “só eu…”
– Os níveis de acesso à existência pessoal de Jesus Cristo -
A partir de Jesus Cristo, o encontro de Deus com a humanidade e da humanidade com Deus passa sempre pela história do homem. Deus deixa-se encontrar como Salvador e Messias em Jesus Cristo na história dos homens. Esse é o fundamento verdadeiro da alegria cristã.
Mas, para podermos compreender melhor Jesus de Nazaré e o seu significado na história da humanidade podemos, seguindo o teólogo González Cardedal, distinguir três níveis de acesso à sua existência pessoal[1].

1.1. Os Factos: conhecimento histórico científico
Neste primeiro nível estamos na presença de todos aqueles acontecimentos, situações, comportamentos, personagens, lugares e tempos que constituem o entrançado da vida do homem Jesus desde o nascimento até à morte. Trata-se de fixar todos estes dados nas suas coordenadas espácio-temporais, de determinar todos os elementos que os constituem e de perceber a sua função e repercussão. Trata-se, fundamentalmente, de tentar saber com a maior exactidão possível como é que aconteceram as coisas independentemente do significado que mais tarde tenham recebido e/ou assumido. O acesso à Pessoa de Jesus Cristo, neste nível, faz-se por um tipo de conhecimento e método histórico-científico[2].

1.2. O Sentido: conhecimento histórico-sapiencial
O segundo nível de acesso à existência de Jesus, segundo o mesmo Gonzalez Cardedal, é aquele que implica toda a sua auto-compreensão humana. Estando subjacente a tudo o que Jesus fazia (cada uma das suas palavras e acções) era o que lhes dava sentido e visibilidade no mundo. Não se trata já então dos factos ou simples acontecimentos, mas sim, antes de mais, do nível profundo da intencionalidade que os animava. É neste nível que todas as figuras de relevo histórico (homens e situações) aparecem como portadoras de um significado e sentido (que pode ser universal). Neste nível já não nos basta sermos observadores dos factos, mas é necessário empenhar todo o existir para poder entender em que medida o viver de Jesus é resposta aos anseios, esperanças e possibilidades do homem. Este é um nível que se baseia necessariamente no anterior, mas que o ultrapassa. Podemos chamar-lhe então um conhecimento do tipo histórico-sapiencial.

1.3. A Revelação: conhecimento religioso-crente
Um terceiro e último nível de acesso à existência pessoal de Jesus Cristo remete-nos para elementos da vida de Jesus que vão bem mais longe que os anteriores. De facto, se nos momentos anteriores nos encontrávamos ao nível da facticidade e da exemplaridade, aqui estamos já ao nível da transcendência, ao nível da fé. Trata-se então de procurar conhecer não já apenas aqueles elementos que nos remetem para o testemunho humano da vida de Jesus (factos ou intenções, contextos ou comportamentos humanos iluminadores de novas possibilidades de existência radicadas já no coração do homem), mas sim todos aqueles elementos que revelam o projecto de Deus para a humanidade. É que, dito de outra forma, em Jesus não estão apenas presentes factores de exemplaridade mas existe algo qualitativamente novo, uma presença especial de Deus que acontece como Dom para a humanidade. A pergunta aqui já não é então sobre o que fez ou como se compreendeu Jesus a si mesmo, mas sim sobre o que é que Deus fez em Jesus e através d’Ele para a humanidade[3].
Evidentemente que neste momento estamos já ao nível da fé. Já não estamos apenas ao nível da exterioridade dos factos, mas estamos ao nível na iluminação consentida do sujeito que vive e contempla esses factos para que possa perceber neles a revelação de Deus, ou seja, sentir os factos como destinados por alguém pessoal a alguém pessoal em ordem à instauração de uma relação também pessoal. Revelação, portanto, só acontece quando coincidem o aspecto objectivo (presença manifestativa) e o aspecto subjectivo (acção iluminadora de Deus no sujeito para que este veja e possa perceber o chamamento de Deus à fé). Evidentemente, aqui estamos já ao nível do assentimento religioso-crente (a fé).

2. Quem não distingue confunde e distinguir não é separar
– A relação entre os três níveis de acesso à existência de Cristo -
Estes três níveis de realidade descritos, apesar de serem vistos em simultaneidade, são autónomos entre si e não se podem desvalorizar uns a partir do outros. Aos factos responde-se com uma análise histórico-empírica; à existência responde-se com uma compreensão que pretende interpretar e que, a partir de uma empatia gerada, é capaz de reconhecer valor e exemplaridade; e à presença reveladora de Deus só se pode responder com a fé.
Apesar de relacionados entre si, estes são três níveis qualitativamente distintos. Porém, e isso é claro para o autor citado, o homem só pode encontrar-se verdadeiramente com a pessoa de Jesus quando aceita percorrer a totalidade do caminho que permite o seu acesso: o Cristianismo só é verdadeiramente fé em Jesus na medida em que Jesus é o Cristo. A fé dos cristãos, portanto, é sempre fé em Jesus Cristo[4]. E isto porque o encontro com Deus não se dá apenas no encontro com as obras, com a doutrina, com o destino, ou com a preocupação fundamental que dominou a vida de Jesus, mas acontece naquela realidade que já não é protagonizada apenas pelo mesmo Jesus, mas sim por Deus: a ressurreição. Possivelmente sem ressurreição teria existido apenas um “jesuanismo” de carácter profético, mas não teria surgido um cristianismo.
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[1] Cf. Olegário Gonzalez CARDEDAL, Jesus de Nazaret (Madrid: BAC, 1993) 361.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid. 368.

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