domingo, janeiro 20, 2008



Bem-aventurados …


Diz o Evangelho de Mateus (5, 1 – 20) que, vendo a multidão, Jesus subiu a um monte. Depois de se ter sentado, os discípulos aproximaram-se d’Ele. Então tomou a palavra e começou a ensiná-los, dizendo: «Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céus. Felizes os que choram, porque serão consolados. Felizes os mansos, porque possuirão a terra. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus. Felizes os construtores da paz, porque serão chamados filhos de Deus. Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céus. Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa no Céus; pois também assim perseguiram os profetas que vos precederam».
Dizer “Bem-aventurados” será o mesmo que dizer “felizes”. Mas, precisamente por isso, surge-nos imediatamente um imenso conjunto de interrogações. Jesus afirma que são felizes os pobres, os que choram, os mansos e humildes, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os construtores da paz, os que sofrem perseguição por amor da justiça. Que sejam felizes os construtores da paz, os misericordiosos ou os puros de coração não nos causa, possivelmente, grande interrogação e até se compreenderá com relativa facilidade: fazer a paz dá alegria, usar de misericórdia aproxima as pessoas, não ter maldade no coração torna a vida mais leve e saborosa.
Mas dizer que são felizes os pobres, os que choram, os que são carenciados de tantas e tantas coisas, parece não fazer sentido. Além disso parece, a certa altura, que são felizes precisamente por chorarem, por terem fome, por serem indigentes. Parece que aquilo que é bom e que Deus quer para nós é, no entanto e sempre, alcançado com necessário sofrimento e, dessa forma, como uma espécie de prémio por méritos provados. De facto, as “Bem-aventuranças” deixam-nos perplexos.
Mas é precisamente aqui, no meio de todas as interrogações e da perplexidade, que se revela a maravilha e a novidade da Boa-Nova de Jesus Cristo. É que a contradição é só e aparente.
Entre as exigências básicas da pessoa humana para fazer uma experiência feliz de vida encontram-se a exigência de sentido (conhecer o “para quê” da vida), a exigência de segurança (saber o “porquê” da vida) e a exigência do amor (amar e sentir-se amado). São três exigências básicas, poderíamos dizer “três fomes” legítimas e próprias a qualquer pessoa. Toda a gente necessita saber para onde vai, porque é que vai e, durante a caminhada, toda a gente precisa de experimentar o dinamismo do amor.
Por outro lado, precisamente, ser feliz não é algo estático, alguém que estivesse paralisado no tempo ou no espaço. Ser feliz (“bem-aventurado”) é precisamente a experiência de ter valores para onde crescer, de ter para onde ir, de fazer a experiência da harmonia e dos valores que preenchem e dão consistência. Às vezes, nos caminhos e nas caminhadas da vida, os valores e as metas (os objectivos) são importantes não por si mesmos, mas sim porque nos fazem caminhar para os alcançar. E é no caminho e a caminhar que se aprende a viver. Como alguém dizia não somos apenas nós que fazemos o caminho, mas é o caminho que também nos faz a nós.
Neste sentido e neste horizonte, se existem coisas que são próprias do homem são precisamente o ser pobre, o chorar, o ter fome e sede, o estar em permanente construção. Como dizia S. Leão Magno é próprio do homem chorar, ter fome, ter sede … mas é próprio de Deus vencer a morte, ressuscitar. Chorar, ter fome … são as expressões mais próprias da condição humana.
Quem são então os bem-aventurados, os felizes? Podíamos responder que são os “autênticos”, bem-aventurados os autênticos, felizes os verdadeiros, bem-aventurados os transparentes. Ser pobre, chorar, ser humilde, ser misericordioso, ser puro de coração, promover a paz ser perseguido por ser justo não se resumem a umas quantas situações. São valores e, por isso, são atitudes. São desafios da construção permanente da pessoa e não apenas “saber o que fazer” perante uma situação pontual.
Então, felizes e bem-aventurados são os que não se abstraem da sua condição própria de homens e mulheres. São os que, assumindo precisamente a sua condição, lhe estabelecem um horizonte de crescimento e de realização, lhe dão um sentido. E Jesus ensina e testemunha para onde é o sentido. Jesus não diz apenas que sabe o caminho, diz claramente que Ele é o Caminho. As bem-aventuranças são um claro convite e chamamento à superação de si mesmo, à denúncia (em si mesmo e nos outros) da mesquinhez e da infidelidade.
Bem-aventuranças, no fundo, são a “Constituição do Novo Povo de Deus”, a Igreja, um fermento de transformação da vida pessoal e da história social dos homens: Ser pobre é renunciar à cobiça e à inveja. É ter espaço dentro de si, disponibilidade, ser capaz de aprender, de escutar, de acompanhar, ser capaz de receber. É perceber a vida como um dom que se agradece e celebra.
Ser humilde é ser verdadeiro (nem mais nem menos do que aquilo que se é). A humildade é a verdade, dizia Sta. Teresa de Jesus. Dentro de nós, diz um ditado índio, vivem dois cães, um bom e outro mau. Os dois brigam. Ganha sempre aquele que nós alimentarmos.
Ter fome e sede é pautar a vida pelo desejo intenso de crescer e ser pleno (desenvolver os talentos). É crescer na verdade porque há disponibilidade para aprender e para saber. É perceber que, como diz o ditado africano, se quisermos chegar depressa temos, talvez, de caminhar sozinhos, mas para chegar longe temos necessariamente, de caminhar acompanhados.
Ser puro de coração é ser sincero, transparente. É não nos “agarrarmos nem ao mal nem ao bem que fizemos”. Às vezes ficamos presos ao bem que fizemos a outros, contemplando-nos a nós mesmos. Ser puro é ser livre de auto-contemplações.
Ser perseguido significa que se têm convicções fortes que se afirmam na vida e das quais não se desiste por coisas menores. É o “martírio”, não do sangue talvez, mas seguramente da paciência e da alegria como testemunhos diários.
Promover a paz é ler a vida e a história com os olhos de Deus, perceber e viver o desafio do amor e do mandamento novo do amor.
Ser e viver como bem-aventurado é nunca se resumir ao lado escuro e fechado da vida. É trazer ao dia a dia a tensão libertadora do Evangelho que puxa pela vida e a faz desabrochar mesmo que exigindo esforço. E exige sempre. Crescer faz doer.
Então as Bem-aventuranças, como todo o Evangelho, não são um impedimento ou uma dificuldade. São segredo e o caminho da felicidade. Deus quer-nos para Si e a viver como seus filhos.

p. Emanuel Matos Silva