quinta-feira, março 05, 2009



A natural convivência
entre a Ciência e a Fé



Público, quarta-feira, 4 de Março de 2009
José Manuel Fernandes

Não é por acaso que o Vaticano de Bento XVI decidiu celebrar, com um congresso científico, os 150 anos de A Origem das Espécies
Cresci num ambiente especial - um ambiente onde a conciliação entre as verdades da Ciência e a crença no Deus dos católicos era absolutamente natural. Muito novo, ainda adolescente, descobri Teilhard de Chardin, cujos livros enchiam prateleiras na biblioteca do meu pai. O padre jesuíta que dedicara a sua vida à investigação como biólogo e paleontólogo passara por dias difíceis no tempo de Pio XII, começara a ser reabilitado no quadro do Vaticano II, cuja doutrina então iluminava católicos empenhados, como os meus pais. E a obra de Teilhard inspirava muito o meu pai, biólogo e crente. Tal como, percebi muito mais tarde, influenciou o jovem teólogo alemão que hoje é Papa. Numa obra de 1982, escreveria que "o sinal enviado por Teilhard (...) incluía o movimento histórico da Cristandade no contexto do processo cósmico da evolução de Alfa até Ómega". Mais: "A máxima de Teilhard - 'o Cristianismo significa mais progresso, melhor tecnologia' - encorajou os bispos conciliares (...) a sentirem que era mais fácil transmitir" a ideia de que "a evolução pode ser entendida como um progresso técnico e científico no qual a Matéria e o Espírito, o indivíduo e a sociedade, formam um conjunto global, um mundo divino".
Não me surpreende por isso que - apesar de, entretanto, eu próprio ter perdido a Fé - o Vaticano tenha convocado um congresso científico e teológico para celebrar os 150 anos da edição de um dos livros mais explosivos de todos os tempos, A Origem das Espécies, de Charles Darwin. E que não tenha convidado para estarem presentes nenhum apóstolo quer do criacionismo, quer do inteligent design, duas correntes que procuram, à força, conciliar as palavras do primeiro livro da Bíblia, o Génesis, com tudo o que a investigação científica nos tem revelado sobre a evolução das espécies.
Se, como defendem biólogos como Richard Dawkins, no best-seller A Desilusão de Deus, ninguém pode demonstrar a existência de Deus, nem sentem que ele faça falta, também é verdade o que próprio admite, como sucedeu numa entrevista ao PÚBLICO: a existência de uma relação entre religiões e civilizações permite perceber que há dimensões na Fé que ultrapassam o domínio da prova científica. De resto, dificilmente Dawkins poderia defender outra coisa, pois se há teoria que o tempo tem ajudado a moldar e sobre cujos mecanismos concretos ainda há muito a descobrir, essa teoria é a teoria da evolução das espécies. O problema não está, nunca esteve pelo menos para os cientistas, na existência da evolução, mas na determinação dos seus mecanismos concretos. O próprio Dawkins, por exemplo, mesmo sendo um darwinista assumido, manteve polémicas acesas com outro biólogo famoso, Stephen Jay Gould, a propósito da sua defesa da sociobiologia e do conceito do "gene egoísta" por contraponto à tese do "equilíbrio pontuado" de Gould.
Porquê? Porque ao contrário de outras teorias científicas, cuja prova pode ser feita repetindo uma experiência num laboratório, não é possível repetir o processo evolutivo que, por exemplo, permitiu que de uma determinada linhagem de dinossauros derivassem todas as diferentes espécies de aves que conhecemos.

Para muitos, recordar hoje o trabalho de Teilhard de Chardin - imerecidamente esquecido - fará pouco sentido quando quer a ciência, quer a teologia, prosseguiram caminhos que não os por ele sintetizados em obras como The Phenomenon of Man, publicado em 1940. Contudo, para entendermos a importância que o Vaticano está a dar às comemorações dos 150 anos de A Origem das Espécies é fundamental não esquecer que Bento XVI tem colocado entre as prioridades do seu papado a reconquista das elites intelectuais do Ocidente, provando-lhes que Fé e Razão não são inimigas, antes andaram de mão em mão. Não deseja, por exemplo, que Galileu seja visto apenas como um cientista proscrito, que agora, séculos depois, a Igreja reabilitou, antes como um cientista que, apesar de perseguido pela Inquisição, nunca deixou de ser um homem de Fé.
O congresso sobre Darwin deve, por isso, ser olhado à luz do que Bento XVI tinha escrito para ler na Universidade de Roma a 18 de Janeiro de 2008 antes de esta lhe fechar as portas. Ou seja, que o Papa ir à Universidade não para "impor de modo autoritário aos outros a Fé, a qual pode ser dada somente em liberdade", antes para "manter desperta a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo a Razão a pôr-se à procura da Verdade, do Bem, de Deus e, neste caminho, estimulá-la a entrever as luzes úteis que foram surgindo ao longo da história da Fé cristã."
Tudo isto porque Ratzinger sempre procurou demonstrar que Fé e Razão não só não são incompatíveis, como podem iluminar-se uma à outra. Para isso não é preciso distorcer a Ciência, antes recordar que o conhecimento humano tem limites e que a crença absoluta na Razão, e esse seu derivado que é o positivismo, constituíram nos dois últimos séculos perigos maiores para a liberdade dos homens do que os "processos de argumentação sensíveis à verdade", como escreveu Habermas e Bento XVI recordou nessa altura.
Quem estudou Biologia e conviveu jovem com a obra Teilhard de Chardin sente que este, se ainda fosse vivo, ocuparia sempre um lugar de honra no congresso que o Vaticano agora organizou.

terça-feira, março 03, 2009



Disse “não” e perdi-me

- Desafios da Quaresma 2009 -



Um pequeno primeiro passo
As grandes caminhadas iniciam-se sempre com um pequeno passo. Com uma direcção e um sentido. Quando se chega ao destino da caminhada, porventura, já nem nos lembramos desse passo, mas ele foi o primeiro de muitos outros passos. E foi ele que definiu o rumo. Foi por ele que uma decisão se materializou.
A vida cristã é toda ela uma caminhada, um percurso de transformação e crescimento, que nos comprometem com o caminho que fazemos. Uma verdadeira transfiguração. Somos a mesma pessoa aos 20, 30 ou 60 anos, mas transfiguramo-nos: progressivamente amamos mais (ou menos), acolhemos com maior (ou menor) facilidade, partilhamos com mais (ou menos) alegria, estabelecemos relacionamentos mais (ou menos) maduros, definimos mais (ou menos) profundamente o sentido das nossas vidas.
Só existe caminho quando se caminha. Aliás, é o facto de querermos caminhar e de termos “para onde” caminhar que abre veredas, caminhos e percursos. Que constrói história e determina projectos de vida. E na vida cristã começamos pela terra o caminho para o Céu. E é o Céu que ajuda a ver a terra e os passos.
A vida cristã, por isso mesmo, não é propriamente um percurso que esteja definitivamente, a priori e de uma vez para sempre, balizado. Tens surpresas, coisas inesperadas. Se apenas desejássemos o que já conhecêssemos, o caminho perderia todo o interesse e passaria a um círculo vicioso. A esperança abre necessariamente ao desejo e ao encontro com o inesperado. E nesse sentido, a real e profunda originalidade deste caminho reside no facto dele ser o nosso caminho e de corresponder à nossa verdadeira capacidade de liberdade. É necessário, portanto, sair, deixar de lados os caminhos copiados de outros, os caminhos sempre percorridos com os sempre mesmos sentimentos, e determinar a nossa orientação fundamental. As distâncias que se percorrem pelos caminhos … são a oportunidade dos combates interiores.

Quarenta dias para caminhar
Um desejo é sempre um impulso acompanhado de uma imagem da sua satisfação. Por isso, de facto, só há desejo quando existe demora na sua satisfação. E a demora na satisfação purifica e aumenta os desejos. É, aliás, a demora na consecução do que se deseja que ajuda a definir se os desejos são verdadeiros e profundos ou se são apenas sentimentos passageiros e superficiais (S. Leão Magno). Desejar é, pois, assumir uma esperança e ser capaz de viver dela.
O tempo de desejo é, portanto, tempo de esperança. Vale a pena, contudo, distinguir entre a esperança e o sonho. É costume apresentar o sonho como motor da vida (“Pelo sonho é que vamos”, Sebastião da Gama). E está bem. Mas talvez seja necessário reconhecer também que a maior parte dos sonhos são mantas de retalhos que, às vezes, permitem viver realidades paralelas e, por isso, algo fictícias. Esperança não é só sonho, esperar não só sonhar. Esperar é desejar o inesperado, a “Terra da Promessa”. Quando se vai até ao último momento da noite (dizia Bernanos) encontramo-nos sempre com outra manhã. Esperar é ir até ao último momento de cada “noite” para se surpreender com a “manhã”! Os cristãos são pessoas da “manhã” mas que passam pela noite. E nesse sentido, mais do que os sonhos da grandeza e da glória (coisas paralelas à realidade), são, paradoxalmente, os sentimentos de impotência os mais fecundos e produtivos porque manifestam que existe “para onde” crescer sem fugir à realidade e ao realismo da vida.

A Quaresma é precisamente uma experiência de caminho dinamizado pela esperança. Não é importante em si mesma, não é uma finalidade em si própria, mas é importante sim e apenas porque conduz e prepara para a celebração da Páscoa. Torna-se, portanto, um instrumento, um meio, enfim, um caminho.
O nosso baptismo, início deste caminho, é já uma Páscoa, mas caminhamos chamados por essa outra Páscoa que acontece quando Deus já é tudo em todos e quando, a partir de tudo o que é passageiro, incerto e inseguro, se soube ir passando para Aquele que não passa nunca – Deus e o seu amor. É, portanto, a partir do Mistério pascal que se entende e vive a vida cristã e que se entende e vive a Quaresma como tempo que abre e prepara a Igreja para a celebração da vida de Cristo no tempo.
“Onde estás ?” pergunta Deus a Adão, expressando a procura que faz de todo o homem. “Sai! Deixa a tua terra e vai para a terra que Eu te indicar” (Gen 12, 1) diz Deus a Abraão. Ou, então, “Sai daí! Tu farás sair do Egipto o meu Povo” diz Deus a Moisés (Ex 3, 10; 6, 26). Ou ainda “Eu sou o Deus que fez sair do Egipto o meu Povo “ (Ex 20, 2; Lev 22, 33). Ou a oração do Povo de Deus repetida tantas e tantas e vezes nos Salmos “Saí, Senhor e vinde ao nosso encontro”.
E com Jesus o mesmo desafio continua. Veja-se, por exemplo, a atitude do Pai do Filho pródigo que, mal viu o filho, “Saiu a correr e o cobriu de beijos” (Lc 15) ou que na festa do regresso “Saiu cá fora a instar com o irmão mais velho” (Lc 15), no fundo, para que ele saísse daquela atitude rancorosa. Ou veja-se o grito do próprio Jesus a Lázaro: “Lázaro, sai! Vem para fora!” (Jo 11, 43) como quem lhe grita: “Vive homem! És feito para viver!”.
Quaresma é, pois, tempo de sair dos lugares, atitudes e experiências sem fecundidade. Um tempo para sair dos túmulos que nos prendem a comportamentos e identidades de morte e de mortos.


Caminhantes e caminhos – os desafios
Enquanto caminho, a quaresma é esse percurso de quarenta dias que fazem a passagem a uma vida diferente. Passo a passo. É essa, aliás, a fonte da sua simbologia: quarenta dias do dilúvio do qual brota como que uma nova humanidade; quarenta dias e quarenta noites de Moisés no Sinai dos quais brota uma relação nova de fidelidade e Aliança; quarenta dias de caminhada de Elias para o Horeb, expressão de um povo chamado a viver da Sabedoria de Deus; quarenta anos do Povo no deserto como progresso para a Terra Prometida, tempo de purificação para aprender a comprometer a liberdade e o amor; quarenta dias de pregação de Jonas em Nínive, expressão de que Deus não desiste do seu Povo; quarenta dias de despojamento de Jesus no deserto que o conduzirão à realização plena da vontade salvífica do Pai.
A Igreja sistematizou no jejum, na partilha e na oração os grandes sinais de vivência da Quaresma. São apelos de deserto, o tal “lugar” de conhecimento superior, a uma maior autenticidade. O jejum pede a valorização da essência das coisas, a partilha pede que, naquilo que damos, nos saibamos dar também a nós, e a oração experimenta-se a única fonte possível de todo o amor que é gratuito e não exige recompensas. Uma vida cristã autêntica nunca é simétrica. A Cruz é a maior expressão dessa assimetria.
Hoje os “caminhantes” deste caminho somos nós. O que seria de Lázaro se não tivesse aceitado, à voz de Cristo, sair do sepulcro? O que seria de Tomé se não tivesse interrogado? O que seria de Pedro se não tivesse negado? O que seria da mulher cananeia se não tivesse insistido? O que seria do cego se não soubesse e conhecesse qual a sua maior fragilidade? O que seria de … e de … e de … ?
Em tempo de Quaresma, e ao jeito de mero exemplo, surgem alguns aspectos que ficam como desafio:
- Colocar em casa ou no nosso local de trabalho um sinal (um símbolo, um Crucifixo, uma imagem, uma frase … etc) que, de forma imediata, nos leve ao horizonte da vivência quaresmal;
- Fazer partilha material (há tanta necessidade);
- Descobrir algo a que, de verdade, no segredo e discrição possamos renunciar fazendo desse acto um acto de verdadeiro amor a Deus; por exemplo, fazer a experiência de tentar encontrar em cada um dos colegas os aspectos mais positivos e de motivo de acção de graças; ultrapassar “miudezas”: ciúmes, comparações, invejas, maledicências, vanglorias, sarcasmos;
- Cuidar da qualidade e da “quantidade” da oração diária. A oração não é um simples meio de vida espiritual, mas a própria vida espiritual em exercício.
- Esforçar-se por melhorar sempre a participação na Eucaristia; celebrar o Sacramento da reconciliação como experiência de celebração do amor de Deus necessária frequentemente em quem caminha para Deus.
O Lázaro – canta M. Torga - sou eu … nado e criado para amar, e que não sei amar! Sou eu, que disse não e me perdi! Que vi Deus e nunca acreditei! Que vi a estrada impedida E passei! […] Quem puder, arranque os olhos e venha cheio de Fé ver o Lázaro real que não vem nos Evangelhos, mas é!...
Quaresma é tempo para dizer um imenso “sim” a Deus. Para experimentar a infecundidade de tentar dizer “não” a Deus. Dizemos-Lhe “não” e perdemo-nos! Porque a vida está do lado do “sim”!


p. Emanuel Matos Silva