sexta-feira, fevereiro 16, 2007




Quaresma … simplesmente


Recordar coisas que até já sabemos
Estamos novamente às portas da Quaresma, um tempo forte, o chamado tempo favorável, na experiência cristã pessoal e na vida da Igreja. Tempo de escuta, leitura e discernimento; tempo de atenção, vigilância e percepção; tempo de amar o essencial das coisas no jejum; tempo para nos abstermos do supérfluo e acessório e discernir o essencial; tempo de exercício das virtudes cristãs e do carácter; tempo de partilha rezada e de oração que conduz à caridade.
Quando a Quaresma é conhecida apenas como um tempo para determinados sacrifícios ou actos de ascese, renúncias ou práticas penitenciais, podemos dizer que não se sabe nada da Quaresma porque a Quaresma quer conduzir-nos sim à descoberta da beleza da fé cristã e, fundamentalmente, de uma fé que se vive. É nessa medida que a Quaresma é um tempo forte, um tempo qualitativamente diferente do tempo comum quotidiano para os cristãos viverem simultaneamente como uma tensão no acesso à felicidade, um esforço positivo de desenvolver qualidades e capacidades, um desejo de conversão transformadora e de regresso a Deus.
Se o acontecimento fundamental do Cristianismo é Jesus Cristo, e Jesus Cristo entregando-Se na Cruz por amor (Mistério Pascal), então a Páscoa é um acontecimento que tem de ser preparado porque recria a nossa esperança e a nossa confiança em Deus e, por essa via, em nós mesmos.
A Cruz de Jesus é, sem dúvida, construída pelas nossas vidas (da qual faz parte a nossa fragilidade e o mistério da iniquidade), mas é habitada por Aquele que destruiu a morte na sua própria raiz. E isso significa que Jesus é Aquele que, habitando as nossas vidas onde elas mais precisam de ser iluminadas, nos faz experimentar a felicidade e a alegria: uma vida habitada, dinamizada, entregue Àquele que não nos deixa morrer é um desafio forte num tempo forte – a Quaresma. A sintonia com o projecto de Jesus apaixona e faz olhar para a vida como algo aberto e a construir-se. O encanto da vida cristã está em perceber que a existência tem um “para quê” a que responder sempre. Fazem parte da experiência desse encanto a gratidão apaixonada pelo dom da vida e a percepção da condição própria com seus limites. Aliás são elas que geram confiança e dão ousadia. Quem não é capaz de gratidão não é capaz de fé. Quem não sentiu já essa paixão do encontro com o Senhor Jesus que se desdobra em fraternidade?! Quem não experimentou já esse encanto que são os joelhos no chão diante do Sacrário como momento onde se alicerça toda uma vida que não acontece apenas “porque tem de ser”, mas sim por resposta e como vocação?! Então a Quaresma é o tempo para deixarmos e exercitarmos que sejam esses encontros a guiar com maior qualidade a nossa vida.
Antes de ser sacrifico e renúncia, a Quaresma é um desafio de apaixonamento e entrega a Jesus Cristo na Igreja e no mundo (ler os nº 109 e 110 da Sacrossanctum Concilium, Vaticano II).


Origens da Quaresma
Desde o séc. II que existe na Igreja um tempo de preparação para a Páscoa em que se pratica o jejum durante alguns dias. A Quaresma, ou melhor, nesse tempo, o tempo de preparação da Páscoa começou por ter apenas uma semana passando, depois, a três semanas em que se lia e meditava o Evangelho de João e, só depois, a 40 dias que se inspiram nos 40 dias que Jesus passou no deserto e que estão profundamente à definição do ministério de Jesus nas suas formas e valores objectivos e práticos de serviço, verdade e amor. A preparação de 40 dias (com jejum) iniciava-se, originalmente, a partir da sexta semana antes da Páscoa, mas como havia pelo meio seis domingos – e o Domingo nunca é dia de jejum – e se queria completar a simbologia dos 40 dias de Jesus no deserto, prolongou-se este tempo antecipando o seu início para a Quarta feira antes da sexta semana antes da Páscoa. Chamar-se-lhe-á, mais tarde “Quarta Feira de Cinzas”. No séc. IV encontramos já imensos testemunhos de uma organização deste tempo de preparação para a Páscoa. Vejam-se, por exemplo, as descrições dos ritos e costumes feitos pela peregrina Egéria em Itinerário de Egéria.
Do séc. IV ao VII-VIII temos o que se pode chamar o período áureo da Quaresma cristã, ao qual se começa a dar, por causa do carácter pascal, um forte carácter baptismal que se expressa nos ritos do catecumenado. Para entender bem a Quaresma há que dizer que no estabelecimento da sua cronologia da Quaresma teve uma grande importância a recordação dos quarenta (40) dias que Jesus passou no deserto em jejum, segundo o testemunho dos Evangelhos Sinópticos e o seu simbolismo. É um número que encontra muitas e significativas ressonâncias na simbologia de toda a história de Israel como Povo a caminho: 40 dias do dilúvio; 40 dias e noites de Moisés no Sinai; 40 dias que Elias caminha para o Horeb; 40 anos do Povo no Deserto; 40 dias em que Jonas pregou a penitência em Nínive.
É assim que ela se assume como um tempo especial em que a Comunidade Cristã, toda a Igreja, está chamada a este exercício de preparação para a Páscoa que tem, antes de mais, um carácter de verdadeira renovação espiritual (renascer...). Tradicionalmente insiste-se na trilogia oração, esmola e jejum mas sempre com o cuidado de não resumir este tempo a um tempo em que “se dizem mais umas orações”, um tempo em que se dão “mais umas esmolas”, ou um tempo em que, esforçada mas rancorosamente “se come menos um pouco”.

Vivências de Quaresma hoje
O sentido da Quaresma hoje está expresso e patente nos nº 109 e 110 da já citada Sacrossantum Concilium, a Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Liturgia. Aí se recorda o seu sentido baptismal e penitencial, mas insiste-se também na escuta mais assídua da Palavra de Deus, e na maior dedicação à Oração:
- recuperação dos elementos baptismais (renuncio... credo...) (Cf. Ritual Baptismo)
- sentido pessoal e social do pecado (109 e 110 da SC insiste no jejum penitencial externo e interior)
Nesses mesmo números do mesmo Documento se reflecte também a teologia e espiritualidade da Quaresma
a) O mistério de Cristo na Quaresma: Jesus Cristo que se encaminha para Jerusalém (realização do Mistério pascal). Quaresma é celebração existencial deste doloroso mas luminoso caminho:
- O Protagonista é Cristo: vide textos do Ciclo A dominical: Jesus retira-se para o deserto para orar e jejuar, transfigura-se na montanha, encontra a Samaritana, cura o cego de nascença, chora a morte de Lázaro e ressuscita-o.
- O Modelo: Cristo que se retira ao deserto e com Jejum e oração vence o diabo com a Palavra de Deus
- O Mestre é Cristo (mestre das atitudes que nos chama a viver particularmente a partir da liturgia da Palavra dos dias feriais...)

b) O Mistério da Igreja na Quaresma (tempo baptismal e de conversão):
- Um caminho de fé mais consciente (a dimensão baptismal deste tempo convida-nos a reviver com intensidade a dimensão baptismal – sim creio em Deus… Jesus … Espírito … Igreja … ).
- Escuta mais atenta da Palavra: o caminho de fé que somos chamados a fazer não pode ser feito sem a referência à Palavra de Deus (é Palavra de Deus, não é uma palavra qualquer).
- Oração mais intensa: a partir do encontro personalizado com Jesus na Palavra, personalizar também mais a oração (fazê-la mais pessoal e personalizante, estruturante da personalidade)...

c) Imagens e “símbolos” fortes da Quaresma:
- Cristo
- Samaritana que encontra a felicidade
- Cego que vê a luz
- Lázaro que, pelo poder de Cristo, experimenta a vida...


d) Espiritualidade:
- dimensão trinitária: estamos no caminho de Jesus de regresso ao Pai, na força do Espírito
- em Igreja: somos irmãos, todos salvos...
- na antropologia do homem novo em Cristo: Samaritana, cego, Lázaro.

Quaresma é o grande retiro da Igreja que se prepara para a vivência do mistério da vida em plenitude. Somos baptizados, transformados pelo Espírito e pelo Amor de Deus. E isso é, em nós, fonte de renovação interior permanente. É preciso aproveitar este tempo, de facto, como tempo favorável! Hoje não preparamos o nosso baptismo, mas tomamos mais consciência das suas potencialidades quanto à realização plena da nossa identidade cristã.

P. Emanuel Matos Silva

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