domingo, abril 01, 2007




Páscoa
- Jesus não está morto -
(Jo 20, 1- 18)


Do Mistério Pascal nunca se diz o suficiente. Mistério Pascal não é apenas uma ideia, uma doutrina ou uma espécie de lei ou instituição. O Mistério Pascal tem o seu núcleo na Pessoa de Jesus Cristo, morto e ressuscitado.
É como nos diz o Papa Bento XVI, no início da fé não está uma teoria ou uma decisão ética, mas um encontro com uma Pessoa, Jesus Cristo.


1 No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus bem de madrugada, quando ainda estava escuro. Ela viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo. 2 Então saiu a correr e foi ter com Simão Pedro e o outro discípulo que Jesus amava. E disse-lhes: «Tiraram do túmulo o Senhor e não sabemos onde O colocaram».3 Então Pedro e o outro discípulo saíram e foram ao túmulo. 4 Os dois corriam juntos. Mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao túmulo. 5 Inclinando-se, viu os panos de linho no chão, mas não entrou. 6 Então Pedro, que vinha atrás, chegou também e entrou no túmulo. Viu os panos de linho estendidos no chão 7 e o sudário que tinha sido usado para cobrir a cabeça de Jesus. Mas o sudário não estava, com os panos de linho, no chão; estava enrolado num lugar à parte 8 Então o outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo, entrou também. Ele viu e acreditou. 9 De facto, ainda não tinham compreendido a Escritura que diz: «Ele deve ressuscitar dos mortos». 10 Os discípulos, então, voltaram para
casa.
11 Maria tinha ficado fora, a chorar junto ao túmulo. Enquanto ainda chorava, inclinou-se e olhou para dentro do túmulo. 12 Viu então dois anjos vestidos de branco, sentados onde o corpo de Jesus tinha sido colocado, um à cabeceira e outro aos pés. 13 Então os anjos perguntaram: «Mulher, porque choras?» Ela respondeu: «Porque levaram o meu Senhor e não sei onde O colocaram».14 Depois de dizer isto, Maria virou-se e viu Jesus de pé; mas não sabia que era Jesus. 15 E Jesus perguntou: «Mulher, porque choras? Quem procuras?» Maria pensou que fosse o jardineiro e disse: «Se foste tu que O levaste, diz-me onde O puseste para eu ir buscá-l'O». 16 Então Jesus disse: «Maria». Ela virou-se e
exclamou em hebraico: «Rabuni!» (que quer dizer: Mestre). 17 Jesus disse: «Não Me segures, porque ainda não voltei para o Pai. Mas vai dizer aos meus irmãos: "Subo para junto de meu Pai, que é vosso Pai, de meu Deus, que é o vosso Deus"». 18 Então Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: «Eu vi o Senhor». E contou o que Jesus tinha dito.




1. As aparições do Ressuscitado
As aparições do Ressuscitado, como no-las referem os evangelistas, têm todas um esquema comum:
a) uma situação de medo, de falta de fé, de tristeza.
Maria Madalena chora; os discípulos de Emaús estão tristes; os Apóstolos no Cenáculo estão cheios de medo.

b) Jesus aparece e não é reconhecido imediatamente. No entanto, Jesus pergunta, interroga e interpela: porque choras; que se passou?; Onde vais?

c) Em cada aparição produz-se uma revelação de Jesus. Maria Madalena reconhece-O quando Ele chama, os disc. Emaús, fazem-no a partir do pão, outros(João) a partir do barco no lago: “É o Senhor”

d) Conclui-se sempre com uma missão como responsabilidade. A aparição não é apenas um consolo para a pessoa a quem Jesus aparece. Jesus entrega sempre uma missão: anunciar e partilhar a alegria.

Vamos então olhar para Maria Madalena. Podemos dividir o texto em três momentos:

1) Porque choras ? Quem procuras?
Nestas duas interrogações se resume o que Jesus nos diz a cada um de nós. Jesus faz-nos sempre uma interpelação directa. Porque choras? Porque estás triste? O que te falta? O que queres que te faça ? O que temes?
E, logo de seguida, a interrogação “ O que procuras ?” que é como quem pergunta “o que estás afazer para sair dessa situação ?”.

2) “Levaram o meu Senhor e não sei onde O puseram”
Si nal da ausência de Deus como experiência de maturidade. É como quem diz “não me falta outra coisa senão Vós Senhor”.

3) “Maria foi e anunciou a seus irmãos: Vi o Senhor”
A ressurreição implica um reconhecimento. Reconhecer o Senhor na fé. Vê-l’O de outra maneira ou de outra forma.
E esse re-conhecimento é um renascimento para a vida nova que Jesus vem trazer.

2. Encontro com Jesus a caminho de Emaús (Lc 24, 13-35)
A Páscoa é tempo do reencontro do homem com Cristo. Uma relação que nem a morte foi capaz de destruir. Aquele que morrera está vivo e é reconhecido. E é a partir daqui que se desenvolve a Cristologia do Novo Testamento: da proclamação do Ressuscitado à confissão do Filho de Deus. Verdadeiramente este era o Filho de Deus como exclamou o Centurião que acompanhou a morte de Jesus.

Para os Judeus (e esse é o contexto das Escrituras) a morte possui um significado profundíssimo. É um acontecimento temporal. Morrer é expirar o último sopro (espírito), mas é também entrar na habitação dos mortos (Shéol). Por outras palavras, morrer é passar a “viver” a “vida” (existência) dos mortos. A morte pode, portanto, identificar-se com uma prisão na habitação da morte.
Esta leitura judaica da morte aplica-se à morte de Cristo: é na Cruz que Jesus morre, no preciso momento em que entrega o espírito (sopro), e “desce” à morada dos mortos.

Nesse sentido Jesus conheceu a morte em toda a sua dimensão, em toda a sua verdade. O mesmo é dizer que a morte experimentada por Cristo é o realismo da sua encarnação a acontecer. Jesus Cristo passa por tudo aquilo que passam os mortais.

Conhecer a morte com todas as suas angústias é, pois, algo não redutível às dores físicas da Cruz, ainda que intensas e destruidoras da vida biológica. Morte é muito mais. A morte não é necessariamente um lugar de tortura, mas mais um lugar de profunda desolação, de distanciamento dos homens (na medida em que já não se habita a terra) e de Deus (na medida em que possivelmente ainda não se está no “Céu”).

E quando o homem, ser de diálogo e de encontro, ser que se constituiu na relação, não está capaz de viver dessa fonte, num trágico opaco sem horizonte de saída, está a “habitar o lugar da morte”. E esse pode ser um estado prolongado ou prolongável.

É este lugar em que reina esta morte que Cristo faz a experiência de habitar. Cristo vive a vida dos homens como homem-com-os-outros-homens. Sem iludir aquilo que, realmente, é ser homem, Cristo vive esta sua vida até ao seu final na morte. Essa é a densidade da encarnação.

A Ressurreição de Cristo tem, portanto, de ser entendida a partir desta experiência de morte. Jesus não ressuscitou como se não tivesse conhecido a morte na sua totalidade. É desse lugar, lugar do poder da morte (onde a morte exerce a sua força e o seu domínio, e onde gera a incapacidade para a vida como continuidade experimentada e sofrida) que Jesus vai ser ressuscitado.

Ressuscitando, portanto, Cristo liberta-Se da habitação dos mortos. Liberta-se da morte que realizou na Cruz. Ou seja, venceu a morte no seu próprio domínio, o domínio da morte (o lugar da morte).

Mas a ressurreição não é apenas a passagem do sepulcro para a terra, um “voltar atrás ao mundo”. Ressurreição é uma acção de Deus que arranca Cristo da morte total (metafísica, teológica, existencial) e não apenas da morte biológica.
Cristo liberta-Se de entre os mortos. A sua contínua relação com o Pai que, também continuamente O gera, não permite que permaneça do lugar dos mortos. Provocará sim, pela relação ao Pai, no Amor que é o Espírito (relação que é constitutiva da sua Pessoa) uma abundância de Vida que a morte não comporta. Por isso a morte é destruída na sua própria habitação. Cristo vence a morte e não apenas a sua morte.

A esta luz, o sentido da paixão e da morte de Cristo na Cruz apenas se pode encontrar na profundidade de um caminho de fé. Em termos simplesmente humanos, a Cruz tem uma objectividade que a torna impenetrável: objectivamente Jesus Cristo é um condenado, um maldito segundo as leis do tempo. E a cruz pode acabar por se tornar num final fracassado de uma história de messianismo.

Frente à crueza de um símbolo objectivo (uma Cruz), o olhar de fé faz ver a Cruz não como princípio de morte, mas como princípio de vida. Na medida em que ela encerra a exemplaridade de Jesus Cristo (transformar a morte e o seus princípios em vida e princípios de vida - do ódio e da violência ao amor e ao perdão...) a Cruz é motor transformador da História e de todas as histórias da história humana [1].

Se olharmos para o facto de que os princípios de violência acabam sempre por provocar uma violência maior, sabemo-lo por experiência e observação, concluiremos que Jesus Cristo contrariou essa lógica de existência quase retributiva.
Jesus Cristo transformou a morte física e toda a morte (feita de exclusão, de traição dos seus amigos, de vingança, de indiferença, de ignorância, de poder sobre o inocente, de vontade de eliminar o inocente) em anúncio de Boa-Nova (anúncio de vida e de perdão, anúncio de uma nova justiça e nova ordem de coisas, uma nova lógica).

A Ressurreição é, então, a confirmação, da parte de Deus, do testemunho de Jesus Cristo. É um rompimento radical com a lógica do genocídio, da mortandade, da vingança, para afirmar radicalmente a vida e as suas consequências.

No acontecimento da Ressurreição há, portanto, uma absoluta novidade que se afirma. Se repararmos no episódio da expulsão dos vendilhões do templo por Jesus, encontramos aí a significação das razões humanas que levaram à morte de Jesus numa Cruz. Ele contrariou uma lógica não apenas na superficialidade (o que talvez apenas o adjectivasse como louco...), mas na sua profundidade. A religião que Jesus vem encontrar no Templo é a religião do sábado. O homem que Jesus vem encontrar nas instituições religiosas do seu tempo é o homem para o sábado. Homem escravizado, isolado. O “deus” que Jesus vê ser louvado neste templo é o “deus”-expressão-da-vontade-de-poder-do-homem, um “deus” que se confunde com objecto, um “deus” quase manipulável.

Mas esse “deus” não seria o Deus, Pai de Jesus Cristo. A expressão existencial da religião que Jesus vem presenciar é a da publicidade das virtudes próprias e condenação dos pecados alheios: no templo e em público a observância estrita dos rituais; em privado e às escondidas, a prática da injustiça.

A Ressurreição de Jesus Cristo é, por isso, quase o grito de afirmação da liberdade do próprio Deus (“não sou quem pensais..”) e, ao mesmo tempo, a revelação do verdadeiro homem ao próprio homem, o caminho para a “humanização” do homem, ou seja, a afirmação de que o sábado é para o homem, a afirmação do homem em diálogo com Deus e acolhido por Deus. O que a Ressurreição destrói é a verdadeira paralisia que encerra o homem sobre si mesmo e sobre os seus preconceitos.

Deve ter sido essa a experiência dos discípulos a caminho de Emaús quando contactaram com Jesus e acreditaram n’Ele. No início os discípulos ainda caminham desanimados. Esperavam, havia três dias, algo de novo, mas não sentiram nada. Só serão capazes de reconhecer Jesus depois do próprio Jesus lhes ter lido as Escrituras.
Estar a caminho é estar disponível para o “outro lado”, o “doutro modo”, o “outro”. E então a ausência marca o desejo. Desejo que não é nostalgia, ou saudade, ou mesmo mera necessidade, mas que é fruto da experiência de estarmos neste mundo a sentir a vida verdadeira como ausente. Deseja-se a transcendência.

De facto, o encontro com o Senhor ressuscitado faz-se progressivamente. É um ir abrindo os olhos. É um encontro que se realiza na Palavra que Jesus Cristo dirige aos dois discípulos. Relendo e recordando as Escrituras, Jesus leva-os a compreender o que havia acontecido. O que Deus pretende não é apenas um êxito clamoroso, mas sim a aceitação do sofrimento segundo um misterioso desígnio prefigurado no destino do servo de Deus no Canto do Servo de Jahwé: a Cruz não é apenas, ou sobretudo, uma catástrofe, mas sim uma dimensão inerente à existência
Talvez por isso, apenas na fracção do pão os discípulos se dão conta de si e reconhecem Jesus. Aquele peregrino, que é hóspede convidado a velar com os discípulos, transforma-se no verdadeiro anfitrião que lhes dá de comer. É neste momento que os olhos dos discípulos se abrem.

3. Encontros pascais com Jesus
Jesus morreu como viveu, entregando-Se totalmente. A sua morte é a hora em que melhor se compreendem as sua palavras e os seus gestos, a sua vida. A morte foi, por isso, a plenitude da sua vida. E ainda que Jesus contasse com uma morte violenta, ninguém Lhe rouba a vida. É Jesus que a entrega, como sempre fizera nos imensos encontros que realizou em vida. Desprende-Se de Si para que outros tenham vidas com sentido. O seu caminho de Cruz é também caminho de Ressurreição. A via-sacra é o caminho da sua vida e da nossa vida.
Neste dinamismo Jesus passou a sua vida pública a encontrar-Se com pessoas. As pessoas procuravam-n'O e Ele procurava as pessoas. Muitos quiseram tocá-l'O, na sua Pessoa e no seu mistério, para se sentirem curados (Mc 6, 53-56). Foi nesses encontros que Jesus Se revelou e Se definiu. São encontros e passos intensos em presença, palavras, atitudes e sentimentos e, por isso, reveladores de identidades - de Jesus e nossas. Foi nestes encontros que as pessoas sentiram a novidade de Jesus e puderam perceber o mistério das suas vidas à luz da sua relação com Deus.
Para cada um de nós a revelação de Jesus e a resposta a esta questão vai-se fazendo no tempo concreto da nossa vida e no mais profundo do nosso coração também em palavras e encontros que dizem muito mais do que podem parecer à primeira vista. É que, como diz Vergílio Ferreira, por fora estamos ... por dentro somos! Estejamos onde estivermos, o nosso ser pode estar em comunhão com outros seres. Mas, muitas vezes, para despertarmos para eles, carecemos de símbolos, sinais, chamadas de atenção que nos façam passar do estar ao ser. É por dentro que as coisas são.

O Evangelho fala de encontros de pessoas com Jesus que se podem hoje repetir em cada um de nós. No tempo em que se passam os episódios narrados no Evangelho, os encontros com Jesus têm sempre como consequência a mudança de vida daqueles que se encontram com Ele. São cegos, paralíticos, surdos, mudos, endemoninhados, etc. Podemos dizer que são encontros verdadeiramente pascais, exprimem a experiência essencial da Páscoa, a vida nova. Ressuscitaremos em Jesus, mas vamos já ressuscitando cada vez que nos encontramos com Cristo e vamos aprendendo a morrer para o pecado, para o sem-sentido. Ressuscitamos na medida em que vamos morrendo.

4. A Cruz como acontecimento trinitário e pascal
No centro de todo o acontecimento Redentor está a Cruz de Jesus. Como acontecimento do Filho, porque Jesus é o Filho eterno do Pai, a Cruz é necessariamente um acontecimento trinitário. O Filho entrega-Se na Cruz por Amor e obediência ao Pai para Salvação da Humanidade.
Amado pelo Pai, possuindo o Espírito Criador do Pai, Jesus Cristo assume na Cruz uma existência representativa, solidária para com a humanidade.
A Cruz é obra do Pai e do Filho na plenitude do Amor que é o Espírito para a re-Criação do mundo. No Cristianismo, a Cruz na qual Cristo morreu e pela qual chegou à Ressurreição, tornou-se, pois, arquétipo da acção salvífica de Deus e modelo da resposta do homem.
Na Cruz evidencia-se a plena unidade de vontade de Pai e Filho, o que revela a Cruz como um Mistério de Amor - o Mistério de Amor que realiza a Salvação.

É a existência trinitária de Deus que funda a possibilidade real da Cruz ser redentora o Amor relacional (unidade e distinção) entre o Pai e o Filho triunfa da Cruz e subsiste como Vida.
Nesta relação de contínua geração o Pai entrega o Filho na Cruz;. o Filho é entregue e entrega-Se a si mesmo; e o Espírito permanece como ligação da temporalidade da morte de Cristo à eternidade vivificante do Pai.
Pelo lado de Cristo a morte foi consentida por obediência filial (Fil 2., 8; Rom 5,: 19; He 5,, 8) à sua missão recebida de Deus e por amor quer ao Pai, quer aos seus irmãos.
Da parte de Deus, Pai e enviante de Jesus, a entrega do Filho acontece por pelo Amor com Deus amou o mundo (Jo 3, 16-17) 56

4.1. O Pai entrega o Filho no Amor
Aquilo que identifica a acção do Pai é o acto de entregar - Deus Pai entrega o seu Filho à morte.
Entrega-O na Encarnação, entrega-O na Cruz e entrega-O, derradeiramente na Ressurreição. A Palavra faz-Se carne e faz-Se Cruz.
Da contemplação de Deus que entrega seu Filho ao mundo, João conclui que Deus é Amor ( 1 Jo 4, 16). Deus não entrega o seu Filho como os inimigos mas entrega-O como Pai, sempre agindo na sua paternidade. Entrega-O gerando-o continuamente mundo, entrega o Filho para Salvação do mundo.
O Pai é pois quem primeiro entrega o Filho, o que revela que a Salvação está no mistério filial que se realiza no mundo. Assim, nesta contínua geração, o Filho é Deus com o Pai desde toda a eternidade e também no despojamento quenótico.

« Neste abandono do Filho, o Pai abandona-Se também a si mesmo, entregando o Filho entrega-Se a si mesmo, embora não do mesmo modo, e sofre também ».
O Pai sofre a dor do despojamento do Filho porque nunca abandona a sua paternidade, a sua relação de Amor que gera: o Filho sofre a agonia e o Pai sofre a morte do Filho.
Se o Filho, na Cruz, sente a falta do Pai, o Pai também sente, na Cruz, o sofrimento do Filho, ou seja a falta do Filho. O sofrimento na Cruz é recíproco, embora o Pai não morra” na Cruz, porque o Amor (gerar e ser gerado) também é recíproco.
Este Amor relacional entre o Pai e o Filho será condição de possibilidade da Cruz, e de aniquilamento transformar-se-á em suprema divinização e glorificação.

4.2. O Filho entrega-se no Amor
Se, por um lado, o Pai entrega Filho na Cruz, também é verdade que o pr6prio Filho se entrega na Cruz. Será importante então relevar a total consonância de vontade entre Pai e o Filho na entrega à Cruz.
O Filho entega-Se na Cruz na sua filiação, expressão radical da sua obediência de Amor ao Pai. A entrega como acto livre de Jesus manifesta a plenitude da sua filiação divina.
Em virtude da sua própria Encarnação, o Filho assume já a morte. Mas como não tem pecado em si essa morte é assumida em liberdade, diríamos mesmo intencionalmente - uma morte por Amor, no Amor, que redime.

Neste Amor a Cruz não surge como uma casualidade mas sim como vontade , sabedoria e poder de Deus ( 1 Cor 1 18 ss). Cristo fez-se obediente não a um destino anónimo mas ao próprio Pai no conhecimento e intimidade do conhecimento da vontade do Pai - a sua obediência representa a tradução do seu Amor de Filho para com o Pai.

Aquele que é entregue, entrega-Se. Neste gesto de separação, a agonia de Jesus que se abandona e é abandonado pelo Pai, se manifestará decisivamente a Comunhão de Jesus com o Pai . “Ele foi entregue por causa dos nossos pecados e ressuscitou por causa da nossa justificação” (Rom 4, 25).
A filiação divina de Jesus surge pois como a única possibilidade de compreender a entrega e obediência de Jesus na Cruz.

4.2.1. Filiação e entrega
O conceito fundamental que expressa a atitude de Jesus é o conceito de “entrega”, o qual revela a total comunhão e identificação de Jesus ao Pai.
O Pai entrega e o Filho entrega-Se, plenamente activo nesta atitude, ou seja, o Pai entrega Filho no Amor que tem à humanidade (Rom 8, 32; Jo 3, 16) e o Filho auto-entrega-Se pelo mesmo Amor à humanidade e ao Pai(Rom8, 5; ãál 2, 20; Ef 5, 1).
Em Jesus Cristo a “condição de filho” e a “entrega” coincidem totalmente, são a mesma forma de Jesus viver a sua contínua e eterna geração pelo Pai.
Cristo, não tendo em Si pecado faz-Se pecado para Salvação da humanidade.
Assim, frente a quem pensasse que Deus deixa Cristo sofrer na Cruz friamente ou que a Cruz é expressão de uma ira divina que exige “satisfação é a própria Escritura que afirma a Cruz como Amor de Deus em nosso favor.

A morte de Jesus entra no desígnio de Deus E Jesus tem plena consciência disso - a consciência que tem da sua entrega é a mesma que tem de ser Filho de Deus e de vir ao mundo para fazer a vontade do Pai.

O mistério da encarnação salvífica em sua totalidade (a consusbstancialidade do Filho connosco) tem a sua raiz profunda na “consubstancialidade” de natureza-amor do Filho com o Pai do qual o dom recíproco do Espírito Santo é expressão.

O Pai é Pai para Salvação do mundo e o Filho é Filho para Salvação do mundo - a paixão é trinitária e a salvação é trinitária.
É na sua “condição de filho” que Jesus encarna e é na sua “condição de filho” que Jesus se entrega e redime.

4.2.2. Filiação divina, obediência e liberdade na Cruz
O ser de Jesus realiza-se a partir do Pai e com vista à humanidade. No dizer de W.Kasper, Ele Filho de Deus no abaixamento, é Filho de Deus na eternidade e é Filho de Deus como plenitude do tempo, Aquele para onde tudo convergirá. Definitivamente, a Cruz manifesta-se como obra de Deus.

Se a Cruz é vontade de Deus, então não é acidente ou casualidade da história, mas sim uma necessidade querida por Deus. O Ser de Jesus é ser Filho ( a Filiação) e o ser Filho revela uma relação essencial de Amor ao Pai. Esta relação de Amor é a medida da Obediência e da Liberdade de Jesus na Cruz.

O Filho não é uma parte de Deus que morre. Ele é Deus como Pai mas, também frente ao Pai Ele é Pessoa diferente da Pessoa do Pai. Acontecendo que o Amor em Deus é unidade e distinção e que cada Pessoa apenas se distingue na medida em que se relaciona, a Cruz do Pai e do Filho.

O Drama da Cruz, centro do Cristianismo, é portanto o drama do Filho - drama de solidão humana mas de comunhão divina Na comunhão divina se encontram radicadas a liberdade e a obediência de Jesus. A Cruz é salvadora porque a obediência de Jesus foi realizada na liberdade do Amor que se auto-entrega pela consciência que tem da sua filialidade e Missão.

Se a filialidade releva a obediência na Cruz, ela releva muito mais a liberdade e o Amor, pois, para Cristo, obedecer é dar todo o tempo a Deus.

4.3. O Espirito e a reciprocidade no Amor que brota da Cruz como Redenção
O Espirito Santo, que procede do Pai e do Filho, é, na Trindade, a Pessoa Comunhão. É Comunhão enquanto, como já afirmámos, é reciprocidade de Amor - o Pai gera no Amor e o Filho é gerado no Amor.; o Pai é a Fonte e o Filho sabe-Se inteiramente recebido do Pai. Toda a vida de Jesus, se passa na consciência de ser o Enviado do Pai - por si só não é nada, nada faz; aquilo que sabe, diz e faz é porque o Pai Lh’O revela no Amor da interioridade divina., Ele é o Verbo de Deus encarnado.

« O acontecimento de Cristo é plenamente humano e plenamente divino: acontecimento de plena codivisão, solidariedade, “consubstancilidade” humanodivina. N’Ele, morto e ressuscitado, Deus morrendo destrói a morte: supera a fragilidade humana, submetida ao poder do limite, do pecado e da morte » .

Toda a Vida de Jesus Cristo é, portanto, como dissemos uma caminhada para a Cruz. Mas para a Cruz vivida nesta, relação de Amor. Na Cruz o Filho de Deus não deixa de ser Filho de Deus.
A “salvação” só se dá quando o Filho eterno do Pai, por um amor sobreabundante (o Espírito) se fez homem e morreu por nós. Só então, Deus em
absoluta liberdade ( e por isso permanecendo Deus) ocupa o nosso “lugar” para que nós os pecadores, apesar do pecado tenhamos junto d’Ele a nossa casa paterna.

O Amor relação ao Pai ( Espírito Santo) revela-Se então como a possibilidade de despojamento de Cristo na Cruz sem que a Morte possa aí ter poder. A reciprocidade no Amor fará com que o Filho nunca deixe de ser gerado no Amor do Pai e por isso ressuscite. O Espírito é pois fonte de vida. O Pai gera na Encarnação, na Vida e, radicalmente, na Ressurreição o seu Filho para a Vida. Ao mesmo tempo a única possibilidade de “substituição” por parte de Cristo é o Espírito Santo.
O Ministério de Jesus é inaugurado na força do Espírito (Lc 4, 14) , desenvolve-se e culmina nessa mesma força.
A ressurreição de Jesus revela pois a paternidade eterna de Deus e a reciprocidade entre o Pai e o Filho:

No Pai, o Espírito é em primeiro lugar Amor que se dá; no Filho, esse mesmo Espírito é em primeiro lugar Amor que acolhe. Consentindo no dom do Pai, o Filho permite ao Pai que se dê. O Amor que acolhe “provoca” o Amor do Pai que se dá gerando. O Espírito procede então da relação do Pai e do Filho, da paternidade de um e da filiação do outro
Esta reciprocidade brota então da Cruz como Vida, o acontecimento acabado da Redenção em que Filho veio dar a Vida ao Mundo. O Amor intra-tritinário revela-se plenamente na Páscoa onde se manifesta, de facto, a vitória de Deus sobre o pecado do Mundo.
A Cruz, como “último acto” revela-se assim como um drama trinitárto, mas um drama de onde brota a vida porque traz a eternidade para ser vivida no tempo.

5. Mistério Pascal – passar para aquilo que não passa
A tradição da Igreja sempre interpretou a Páscoa como “passagem”. E sempre a “passagem” teve diversos sentidos:
- passar sobre (hyperbasis): quando fala de Deus ou do seu anjo que passa sobre as casas dos judeus sem os ferir
- passar através de (diabasis): quando o povo passa do Egipto para a Terra Prometida
- passagem para o alto (anabasis): quando o homem passa das coisas terrenas para as coisas do céu
- passagem para fora (exodus): quando o homem sai da escravidão do pecado
- passagem para diante (progressio): quando o homem progride no caminho da santidade.

Na base da ideia da Páscoa está, portanto, a ideia de uma passagem: da morte para a vida. É algo que se evoca como provisório e transitório, algo que é preciso ser ultrapassado. E só é possível parar quando se chega à plenitude, quando se chega à Parusia. Como disse Sto Agostinho, num dos seus comentários ao Evangelho de João (55, 1 in CCL 36, pp463) a Páscoa é passar para aquilo que não passa.
E, de facto, se virmos à nossa volta e bem dentro de nós, tudo passa. Mas, diante deste tudo que passa, há Alguém que não passa: Deus, o Amor de Deus.

O homem é frágil, passa, é transitório. Deus não passa, não é provisório, não é transitório. Por isso a Páscoa é passar para o que não passa nunca: Deus.

Diante desta passagem podemos reflectir a morte de Cristo como uma passagem: e só passa quem se entrega na liberdade e na obediência. O Pai entrega-Se novamente e entrega o Filho e o Filho entrega-Se ao Pai e à humanidade.
Então, em Cristo, todos passamos, todos vivemos a passagem que é a Páscoa. A humanidade está representada no Adão da queda e está, sobretudo, representada no Jesus Cristo da redenção. Cristo morreu pelos nossos pecados e a essência da sua missão pode centra-se aqui: morreu por nós.

Este “por nós” não significa uma substituição penal ao estilo de vítima que entregámos por nós. Este “por nós” é “em nosso favor”. Se quisermos é o essencial da nossa oração: Cristo repete-se no coração de cada um de nós.
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[1] Cf. José Tolentino MENDONÇA, Páscoa quebra imposição do conformismo, in Público (Destaque,28.03.97) 4.

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