segunda-feira, julho 30, 2007

QUE(C)RER ?

- questões em torno da fé -1 -


Eu creio, eu tenho fé. Parece algo fácil e simples de dizer. Foi-nos dado acreditar. Mesmo se confundimos o acto de crer (acreditar) com aquilo em que acreditamos ( o conteúdo acreditado). Nascemos numa família, num contexto, em que a fé se transmite naturalmente. E, nesse sentido, pode dizer-se que “fé” é a palavra cristã por excelência. O Cristianismo, talvez mais do que outra realidade religiosa, merece o nome de fé. É a própria Sagrada Escritura que utiliza o termo para se referir ao movimento/dinamismo de seguimento e identificação com Jesus Cristo.

Mas a afirmação da fé, o “eu creio”, pode não ser tão simples. Referindo-se ao homem como ser aberto e à escuta, capaz de ouvir e acolher, a Escritura e o pensamento cristão referem-se à atitude de resposta como sendo a fé. Significa que o homem passa de ouvinte a crente, passa da procura ao acolhimento.
É precisamente neste percurso que vai do “ouvir” ao “aderir” que surgem algumas interrogações. O que é que há, para além do homem, que valha a pena ouvir e que contenha tanta novidade? Que necessidade há de ouvir ou abrir ? Não é a experiência subjectiva das coisas e da vida a única capaz de dar sentido à vida de alguém ? No mundo do provável e do experimentado qual o lugar que se reserva à atitude de fé ?

Sem respostas simples somos reenviados ao homem e à sua questão. Ele é alguém à procura de sentido. É inquieto, interrogativo e inquietante. E quando, nesse processo de procura, ele manifesta disponibilidade interior para a novidade não controlável por si, nasce um tipo de relação diferente com o mundo, com as coisas e com os outros. A sua subjectividade não esgotou o horizonte da sua procura e da tentativa de resposta. E a questão da fé, ou mesmo a questão de Deus, nasce dentro da questão do sentido. É quando o homem se interroga sobre e pelo sentido que se pode encontrar com Deus e que pode acreditar. E o sentido encontra-se sempre na referência da vida a valores ou na referência da vida a ideais que têm capacidade de dinamizar a mesma existência. É que “procurar” abre o homem ao encontro com o sentido da vida e com Deus, enquanto “exigir provas” limita a disponibilidade e o horizonte da revelação daquilo que pode ser totalmente novo para o homem. Sobretudo se a “prova exigida” corresponder a um requisito pré definido. Na fé, como em muitos outros campos da vida, o preconceito mata o futuro da relação. É engraçado pressentir que quando exigimos provas a Deus nos encontramos, a maioria das vezes, apenas connosco próprios e com o nosso mundo e seus problemas.

Talvez haja cada vez menos coisas a carecer de uma explicação racional para existirem. Hoje quase tudo tem uma explicação. E, no entanto, continua a ter sentido acreditar, ter fé. Esse facto não limita em nada a fé cristã. Porque a fé é da ordem da relação. É uma forma original de relação a um objecto de conhecimento. E só relacionando-nos acreditaremos e conheceremos.

Conhecimento, confiança e comunhão são aqui aspectos da totalidade humana que, estando presentes em todos os processos da vida humana, estão também presentes no processo de adesão a Deus. Ser, saber e querer. Deus e homem são sujeitos livres de uma acção.

Por isso se falará da fé como dom de Deus, fruto de uma acção do Espírito de Deus, mas também, simultaneamente, como decisão livre e racional do homem. E, embora pessoal, nunca realizada no isolamento. Supõe os outros, a comunidade, a experiência da vida.

Crer, acreditar, não será, portanto, apenas um acaso. Não é possível crer sem querer. Para querer algo é preciso acreditar que vale a pena. É preciso crer no seu valor. Mas também é verdade que se não quero não posso crer. Seria, neste caso, uma crer vago, vazio, sem força definidora devida.

A questão é a do desejo. Somos seres de desejo, somos uma ânsia em busca de harmonia, de afecto e de sentido e só aderimos àquilo que percebemos como oferecendo-nos esse valor. Essa adesão de coração é um acto de fé. Ninguém me pode provar esse valor, mas, na medida em que o queira aprofundar e saborear, comprova-se ou não a sua realidade. A fé não se prova, comprova-se pelos frutos desse desejo[1].

Um caminho possível para compreendermos o que é a atitude de fé é o facto de que a vida do dia a dia está cheia de “formas elementares de fé”. É aquilo que podemos definir como a fé no outro, nas próprias possibilidades, na vida em sociedade, na palavra dada, na relação estabelecida, etc. É o facto de que ninguém aguenta viver muito tempo sem um alicerce de confiança, de amor, de esperança.

Enquanto caminho para compreender o que é a fé cristã, este caminho tem a sua validade na medida em que nos aponta estruturas universais do homem que são requeridas para a sua felicidade. E, nessa medida, aponta para a fé como uma atitude humana. É uma atitude do homem e não contradiz aquilo que o homem é por definição e constituição.

Mas a fé cristã tem uma especificidade e uma originalidade que não se resumem a estes factores. A fé cristão não é o mero resultado das interrogações humanas nem se esgota nas suas potencialidades. Ela é algo de novo na vida do homem. Enquanto valor e ideal, a fé cristã implica o homem no próprio processo do seu nascimento e crescimento, mas supõe sempre a revelação de Deus. É por isso que a podemos definir como uma atitude de resposta. A sua originalidade e especificidade têm que ver com o conhecimento, a confiança e a comunhão que, por Jesus Cristo, o homem estabelece como relação com Deus.

Amar, conhecer, confiar, comungar são da lógica do sair de si mesmo, são da lógica do aproximar-se. É a mesma lógica da fé: receber-se do facto de se dar, encontrar razões e caminhos pelo facto de se desarmar, de se abrir e dispor a acolher. O que é diferente da anomia, da indiferença ou mera passividade. Ao que é que vale a pena ligar-se e aderir ? A fé, bem como o ver o invisível, não é contraditória. É paradoxal, exige sabedoria, perspicácia, sentido crítico, procura e paciência fiel. O povo diz, muitas vezes, que “quem não se fia não é de fiar”. Com Deus e em Deus, quem não confia não é capaz de acreditar.

Que(c)rer não é um trocadilho de palavras. É o desafio a que, querendo, levantando os olhos ao redor, acreditemos.

P. Emanuel Matos Silva

[1] Vasco Pinto de Magalhães, SJ, Nem quero crer (Coimbra: Ed. Tenacitas, 2002) 17.

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