sexta-feira, maio 15, 2009


Se quer rezar, tem de tirar a boina
- Francisco Marto,
“desempenado” e contemplativo –



Nove anos apenas
Francisco Marto, uma das três crianças (pastorinhos) que testemunharam as aparições de Nossa Senhora em Fátima, é uma figura extremamente rica e que desperta imensas interrogações e desafios. É a criança que alguém definiu como tendo “um ar desempenado quando respondia às perguntas”, desempenado e contemplativo. O Francisco que responde com “ar desempenado” é o mesmo Francisco que, com o mesmo “ar desempenado” levanta interrogações. Suas e também de todas as crianças.
“Vossemecê, se quer rezar, tem de tirar a boina” disse Francisco a um preso enquanto em conjunto rezavam o terço.. A figura deste “Pastorinho” é de uma intensidade extraordinária. Nascido a 11 de Julho de 1908, baptizado a 20 do mesmo mês, morreu a 4 de Abril de 1919, foi beatificado em 13 de Maio de 2000 pelo Papa João Paulo II.
Partindo dos seus nove anos de idade e do seu contexto existencial, passando pela sua personalidade ou temperamento e admirando a sua fé, deixamo-nos cativar pelas suas expressões de inocência e de amor que acabam por concluir na sua total entrega (capacidade de dom) a Deus pelas mãos de Maria. É impossível seguir de perto a sua história sem se deixar interrogar. É impossível acompanhar o seu percurso sem deixar que, da sua infância feita “oferta agradável a Deus”, surjam interrogações e implicações para todos os tempos e a muitos níveis.
Francisco Marto diz-nos, pois, “espontaneidade”, “autenticidade” e “confiança”! Se colocarmos uma criança e um adulto diante de uma casa enorme e esteticamente impressionante pela beleza, colheremos seguramente duas reacções diferentes. O adulto falar-nos-á do preço da casa (“Que casa caríssima!”). A criança, por sua vez, referir-se-á à beleza da casa e, por conseguinte, ao seu valor (“Que casa bonita!”). Talvez isso aconteça porque, como diz um poeta, os adultos já não têm tempo para dar de comer aos pássaros. Mas, de facto, a simples observância das crianças mostra- nos como têm uma incrível facilidade em passar do terreno do mundo material e físico para o mundo e “experiência” do Sobrenatural. E, mais do que apenas isso, falam-nos desse mundo com uma proximidade cativante, uma convicção imensa e uma desenvoltura desconcertante.
É evidente que se torna necessário, e a educação também o promove, passar da “metafísica apenas pessoal” para o campo da “física universal”. A passagem não deve, contudo ser tão rápida que nos impeça de reparar no essencial já que, à priori não tem de existir contradição nem oposição entre a metafísica pessoal e a física universal. A espiritualidade radica as suas origens no mais profundo do ser. Quase poderíamos dizer que é, como o “rir” e como a “linguagem” um dado humano fundamental.
Sobre a espiritualidade da crianças, Francisco dir-nos-á seguramente que é necessário crescer (“fazer-se um homem” como se costuma dizer na linguagem dos “adultos”) sem perder aquilo que dá sentido à vida. A história das aparições e da vida de Francisco fala-nos de uma criança pacífica, dócil, bondosa, condescendente, com sentido de humor, brincalhão, de fácil relação e amizade, atento e perspicaz, reservado, destemido, contemplativo, sincero, transparente, delicado, paciente. Tantas coisas boas que, mais ou menos naturalmente, podem despertar e ser alvo de pedagogias para se fazerem mais realidade existencial. Nessas atitudes estão todas as linhas com que se “desenha” e faz um Homem.


Espiritualidade adulta
Se não vos tornardes crianças não entrareis no Reino … (Mc 10, 15). O Reino é para crianças. As palavras de Jesus não deixam lugar a dúvidas. Mas o apelo de Jesus não é, de todo, um convite ao infantilismo ou à imaturidade. A possibilidade de inspiração de uma espiritualidade cristã adulta na criança que é o Pastorinho Francisco surge, precisamente, das qualidades da infância de Francisco e de todas as crianças. A experiência da maturidade cristã faz do adulto não apenas uma “pessoa grande” mas sim, e sobretudo, uma “pessoa crescida e a crescer”! Crescer não significa apenas, deste ponto de vista, acrescentar anos à vida. É sim acrescentar vida aos anos. Espontaneidade, autenticidade e confiança são então, entre muitas outras, três notas que se testemunham em Francisco e que são marcos incontornáveis de uma espiritualidade cristã adulta.
É necessário, por isso, transfigurar a infância para se ser cristão adulto: crescer em idade mantendo a referência e a marca “original”! O“ser criança”, no desafio das palavras de Jesus, é uma experiência de plenitude, uma experiência de maturidade cristã, uma expressão do homem “à estatura de Cristo” que confia, que é autêntico e espontâneo! Não se trata, portanto, de construir “homens infantis”, mas sim de reparar nos dinamismos da maturidade cristã como expressões de uma infância transfigurada que se manifesta e reage com base na simplicidade, alegria, espontaneidade e, sobretudo, confiança filial.
Uma criança pode ser modelo de fé para um adulto? Não será isso uma infantilização ou, pelo menos, algo desconexo? Pergunto: Um carro de mão puxa-se ou empurra-se?! Responder-me-ão, seguramente, que “depende”. E, de facto, depende do que se pretende, do “para onde” se pretende ir, do tipo de “carro de mão”. É o mesmo que acontece em relação à afirmação da possibilidade das crianças como modelos de fé poderem indicar ou não uma infantilização da experiência religiosa. Depende de muitas condicionantes. Tratar-se-ia de infantilização, se no horizonte da caminha da cristã, se perdesse a noção da finalidade de tudo o que se faz.
Quando um adulto olha para uma criança como modelo de fé, contempla, sobretudo, a “inocência” (vamos chamar-lhe “originalidade” livre) dos dinamismos e não tanto a eficácia das situações. A criança, objectivamente, é aquele que se está a fazer, que está em estado de construção (E isso pode ser bom e pode não o ser, é transitório). Porque está em construção tem também de saber o que pretende construir. O factor importante na fé é o acesso à Pessoa de Jesus Cristo. E isso tem caminhos e dinamismos próprios.

Modelo de fé
Acolher a criança como modelo de fé não é, então, padronizar a realidade a partir de uma criança e reduzir o âmbito da própria realidade. A isso chamar-se-ia ilusão. Acolher a criança como modelo de fé é ser capaz de purificar as percepções, é ser capaz de abordar o complicado e complexo com a simplicidade superior de quem confia e não alimenta suspeições. É ser capaz de ser livre!
Acolher a criança como modelo de fé é reflectir a possibilidade de ser adulto e manter a “inocência” que faz amar sem desconfiar, que faz confiar sem suspeitar. É não deixar envelhecer a referência da vida a Deus. E, por isso, com a propriedade que a própria vida acarreta consigo, ser pacífico, dócil, bondoso, condescendente, com sentido de humor, brincalhão, de fácil relação e amizade, atento e perspicaz, etc, etc, à maneira de Francisco.
A história das aparições e da vida de Francisco fala-nos, como já referi, dessa criança pacífica, dócil, bondosa, condescendente, com sentido de humor, brincalhão, de fácil relação e amizade, atento e perspicaz, reservado, destemido, contemplativo, sincero, transparente, delicado, paciente. Tudo coisas que fazem a vida de alguém mais feliz! Ou não?!
As memórias em que nos é narrada a história de Francisco merecem, e têm já superiormente elaborado, um estudo crítico. Mas nunca deixará de impressionar a confiança absoluta de Francisco em Deus e a capacidade de relativização do que ele considerava “coisas sem importância” (“Deixa lá, a mim que me importa o lenço?”).
Nunca deixará de impressionar, nesse horizonte, o seu amor e a sua entrega a “Jesus escondido”. O que torna uma criança de nove anos capaz de um amor assim? E o que lhe dá força para se tornar desta forma uma “oferenda agradável a Deus”?
O amor e a dispersão são experiências em sentido contrário. O amor unifica sempre. E, embora não limite nunca a extensão das experiências, o amor valoriza sobretudo a intensidade (não muitas coisas ao mesmo tempo, mas as coisas mais importantes).
Então a “capacidade de dom” é o que melhor a traduz a gratuidade, o prazer (mesmo que, depois, peça esforço) e a liberdade que a criança coloca como “exigência” em tudo o que faz. Aquilo que resistir às exigências de gratuidade, prazer (ser feito com prazer que é diferente de ser feito para dar prazer) e liberdade obtém da criança a colaboração e o empenho. E Francisco faz-se “dom” para Deus e para a Igreja. É uma experiência de gratuidade total, uma relação pessoal com o Mistério de Deus que não se possui mas ao qual não se consegue escapar. Um Mistério que nos relativiza, mas ao mesmo tempo, nos sustenta.
Em Maio, mês de comemoração das aparições de Fátima, vale a pena voltar a ouvir Francisco: “Hoje sou mais feliz … porque tenho dentro do peito a Jesus escondido” e exclamar também com ele “Ó minha Nossa Senhora, terços, rezo todos quantos Vós quiserdes”.


p. Emanuel Matos Silva
pde.emanuel@gmail.com

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