domingo, dezembro 21, 2008




Abrir para que ninguém possa fechar


- Uma experiência de Natal -



A liturgia da Igreja, sábia de séculos, tem neste tempo de Natal expressões extraordinárias do lugar central que quer dar a Cristo no coração de cada pessoa e na vida de todos os dias. “Ó Chave da Casa de David, que abris e ninguém pode fechar, fechais e ninguém pode abrir; vinde libertar os que vivem no cativeiro das trevas e nas sombras da morte” é uma das chamadas “antífonas do Ó” (frase ou refrão) que se cantam nos sete dias que antecedem imediatamente o Natal e que no seu conteúdo, tomado dos profetas, são uma síntese de toda a esperança messiânica e de todo o desejo humano de encontro com Jesus, o Filho de Deus que Se faz Homem. Sistematizadas nos séc. VI – VIII são como que um “grito” pedindo a Deus que envie o seu Messias e que Ele nunca abandone a nossa história. Todas as antífonas nos abrem ao mistério da identidade profunda do Filho de Deus mas aquela que acabei de referir é extremamente significativa: “Ó Chave da Casa de David…”

A analogia concreta da chave é forte e intensa: Cristo como a Chave que abre e liberta porque existem fechaduras que não se abrem sozinhas. E o homem e a sua vida fazem muitas vezes parte dessas fechaduras.
Maria, Nicodemos, Simão, Mateus, a mulher samaritana, o cego de Jericó, os filhos de Zebedeu, os discípulos e apóstolos, os paralíticos e possessos são exemplos, no Evangelho, de fechaduras abertas. Aliás, o Evangelho é um imenso e expressivo entrançado de encontros e reencontros em que o Rosto de Deus se revela em Jesus Cristo. É a Chave de Jesus – a sua vida - que abre todas essas vidas fechadas.

Em Jesus o Reino aproxima-se definitivamente de nós. E a conversão a que somos chamados é simplesmente sair do “país da trevas” para entrar na Cidade Santa da Jerusalém celeste, a experiência da luz, a morada de Deus com os homens.
Fechaduras que, ainda hoje e a partir de Jesus Cristo, é preciso abrir, com a urgência e a emergência que tem a vida de cada pessoa, são:

* as perspectivas deformadas de si mesmo (dependências afectivas activas e passivas geram simpatias e antipatias nem sempre construtivas);

* as perspectivas deformadas da representação de Deus (não se pode reduzir Deus representando-o à imagem do homem e das suas necessidades; a “experiência de Deus?” não se reduz a uma mero sentimentalismo; quando alguém incoerente quer encontrar Deus apenas por si mesmo, acaba por reduzi-l’O a um estado de alma, um sentimento ou emoção; normalmente, uma pessoa incoerente nunca deixa Deus ter a iniciativa sem a controlar);

* as perspectivas deformadas no que respeita à relação com os outros (não é possível olhar para os outros apenas a partir das necessidades e conveniências próprias de quem observa e com as consequentes antipatias e invejas que se geram daí);

* as perspectivas deformadas no que diz respeito aos ideais de vida (não se pode olhar para a vida apenas a partir do sucesso pessoal constante).

Faz lembrar aquele livro “Cavaleiro da Armadura enferrujada” (de R. Fisher) que narra a história de um « cavaleiro que se considerava muito virtuoso, amável e dedicado. Fazia todas as coisas que fazem os cavaleiros virtuosos, amáveis e dedicados fazem […] Era um cavaleiro famoso pela sua armadura. Reflectia raios de luz tão intensos que, quando o cavaleiro partia para a batalha no seu cavalo, os aldeões juravam ter visto o raiar do sol a norte ou o ocaso a oriente» (p. 11). Mas por nunca querer tirar a armadura de guerra que aparentemente o protegia, deixou-se ficar prisioneiro dentro da sua “protecção” e da sua ferrugem. Aquilo que outrora o havia protegido, agora, e por ser mal usado, era a sua prisão. E fonte da sua infelicidade.
O Natal vem, precisamente, abrir, fazer abrir. Jesus, quando acolhido e amado, liberta-nos das prisões que nos impedem a felicidade. Deixá-l’O nascer dentro de nós (na nossa inteligência, na nossa vontade e no nosso amor) é abrir, sair de nós, ir ao encontro, crescer. Por isso a caridade, a solidariedade, a comum dignidade. Um Santo e Feliz Natal são os meus votos sinceros.


p. Emanuel Matos Silva

Sem comentários: