segunda-feira, março 30, 2009



Crucificado

Um dia, um meu irmão que tinha o que eu não tenho
- A ridente ignorância a que só Deus assiste –
Pegou dum grande, rude, grosso lenho,
Matéria bruta, e viva que resiste...

Vencendo-a, afeiçoou as fibras angulosas
A umas formas viris, tão puras como cruas;
Pôs-lhe um trapo nas partes vergonhosas;
Estiraçou-lhe os pés e as pernas nuas.

Dos ramos laterais do lenho primitivo,
A navalhadas, fez os braços que faltavam,
Toscos, mas com, lá dentro, sangue vivo,
E tumefactas mãos que se espalmaram.

Enfim, todo a tremer de amor e de receio,
Noutro bloco, moldou uma cabeça aflita,
Com pálpebras descidas até meio
E a boca a abrir num grito que não grita.

Tudo o que de cruel a vida lhe ensinara
Mais o que tinha em si maior do que o destino,
Sem mesmo ele o saber, ganhou voz clara
No longo rosto esquálido e divino.

Dois troncos pôs em cruz e assim fez o madeiro;
Sobre ele ajuntou e cravejou tudo isto;
E aquilo que ontem era um castanheiro
Num altar figurou de Jesus Cristo.

O tempo foi rolando... E os centos de anos viram
Rojar-se a multidão ante esse lenho, – santo
Só porque, sob a graça, o esculpiram
Umas humanas mãos em pó há tanto!

Quantas profanações, depois, não arrastaram
Por lôbregos saguões, recantos, corredores,
Esses membros que bispos incensaram,
Essa cabeça do Senhor das Dores?

Até que um dia, entrando a um sótão miserável,
Vou encontrar no chão, entre sucata, aquela
Mutilada cabeça inda admirável,
Por mutilada e vil não menos bela.

Juntei, juntei, tremendo, os restos de Jesus:
A sagrada cabeça, o busto carunchoso
E os braços despregados já da cruz,
Com mãos roídas como as dum leproso.

Mandei, mandei buscar essas mutilações
Com elas me fechei no meu buraco, e o dia
Se me foi entre velhas orações,
Que eu nem sabia já que inda sabia...

Às vezes, quando o ar parece que me foge,
Me falta Deus, ou espanta a nossa condição,
Como os fiéis de outrora, a seus pés, hoje,
Dobro o joelho trémulo no chão.

Nem restos de orações lhe rezo! Nada rezo.
Espero no silêncio e na opressão, curvado,
Que Jesus Cristo ao seu madeiro preso
Tenha dó de mais um crucificado.

Das pálpebras que o tempo enegreceu, o olhar
Que entre elas se não vê, mas se adivinha e sente,
Me banha todo, então, como um luar,
E me diz que há Alguém ali presente.

Não!, já não fico só na minha solidão!
Já me não pesa tanto a minha própria cruz!
Já quase, quase sei (Jesus, perdão!)
Que tenho em ti como um irmão, Jesus.

Meus olhos, que a ruindade interior calcina,
Inundam-se-me então de bruma e de frescura,
E eu choro por nós todos, cuja sina
É sermos a imperfeita criatura...

E a graça que uma vez desceu dos altos céus
As mãos do pobre artista incógnito, as benzeu,
E as fez fazer dum tosco lenho um Deus
Tão próximo de nós como do céu.

A pouco e pouco vem sobre a cabeça
(Com o calor do sol que enxuga os próprios lodos)
De modo que já nada há que me impeça
De ser feliz!, e irmão de tudo e de todos.

José Régio (1901-1969)

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