terça-feira, setembro 12, 2006


Vocações que Deus nos dá

O realismo da fé cristã

A fé é impressionantemente realista. E somos nós que, muitas vezes e por muitos motivos, a fazemos uma mera abstracção ou um conjunto de abstracções. Retiramos-lhe a consequência. Diz Madeleine Delbrel que fazemos da fé, muitas vezes, uma simples arte … abstracta de viver, uma teoria filosófica ou um sistema de pensamento, construímos ideias acerca da fé ou temos dela uma ideia. Ora a fé é uma ciência prática: é o saber construir a vida hoje, aqui. E, muitas vezes, enganamo-nos acerca dela: não há fé em estado puro; a fé é para um homem, para uma vida de homem, para dedicar esta vida de homem, em Cristo, à salvação de todos os homens; para dedicar esta vida de homem, em Igreja, à salvação do mundo inteiro […] A fé está no tempo e para o tempo, o tempo onde acontece esta vida do homem […] A vida que a fé transforma por dentro é uma vida que manifesta e realiza o amor de Deus, que mostra o amor de Deus como uma árvore mostra os seus frutos, onde os dois mandamentos (amar a Deus e aos outros) são inseparáveis, indivizíveis[1].
O aparecimento do Cristianismo, ao nível da vida religiosa, ao nível das sociedades, ao nível das culturas, trouxe sempre consigo o irromper de um pequeno grupo extraordinariamente vivo, criativo e virulento de novidade[2]. O testemunho das primeiras comunidades surpreende e fascina sempre. A irrupção do Cristianismo renovou interiormente homens e mulheres de todos os tempos, deu-lhes um novo Espírito (Rom 7, 6) que transforma a sua forma de pensar e viver e, sobretudo, os faz membros de uma nova comunidade na qual vivem de acordo com o mandamento novo (Jo 13, 34). A novidade cristã leva os discípulos de Jesus de todos os tempos a viver uma “vida nova” que origina novas formas de vida quotidiana: comunidades de irmãos em Cristo, comunidades que se caracterizam pela alegria, pela esperança, por novas relações entre os seus membros, por um novo olhar e nova perspectiva sobre o mundo, sobre a vida e sobre a própria morte[3]. E hoje, quando nos baptizamos e, depois, casamos ou somos ordenados padres, entramos nesta comunidade e continuidade. Será uma abstracção?

Novidade do Cristianismo e envelhecimento da Igreja ?

Não é estranho, diante da novidade do Cristianismo, que ouçamos perguntar a Paulo: “Podemos saber que doutrina nova é esta que nos expões?” (Rom 6, 4; 1 Tes 4, 13). Já de Jesus muitos contemporâneos tinham dito: “Eis aqui uma nova doutrina” (Mc 1, 27). Com vinte séculos de história o nosso Cristianismo não é, portanto, um Cristianismo fatigado. E num Cristianismo que não está fatigado, a Igreja é memória e é profecia. Mas existe sempre uma condição: que a Igreja, comunidade e cada um dos seus membros, saiba alimentar-se sempre do seu núcleo: Jesus Cristo. É que os cristãos não se produzem nem propagam por clonagem.
Por isso, a Igreja só envelhecerá se muitas das suas estruturas, em vez de anunciarem e presencializarem Jesus Cristo, O ocultarem. Só envelhecerá se faltar nela a transmissão da fé que faz dos pais e das famílias os primeiros comprometidos na vida dos filhos. Só envelhecerá se um dia persistir em tornar-se alheia aos outros. Só envelhecerá se deixar de se evangelizar a si mesma. Só envelhecerá se não tiver capacidade de acreditar primeiro no que anuncia como vida. Só envelhecerá se não for capaz de transmitir a fé como o melhor da vida. Só envelhecerá se se resumir a um “emprego”.
É interessante que, quando Jesus diz aos seus discípulos que são Luz do mundo (Mt 6, 1 -17), Jesus não lhes diz que devem tentar ser vistos pelos homens. Jesus diz-lhes claramente que eles (discípulos) são essa luz que não pode ficar fechada. Jesus não pede, de facto, que saibamos atrair as atenções sobre nós. O que Jesus diz é que: “se fizerdes o que vos mando, sereis vistos pelos homens quer queirais, quer não”. A visibilidade da Igreja pertence à sua própria essência[4]: ela constitui-se do que Jesus “manda” enquanto descoberto e afirmado como possível de viver.
A Igreja só envelhecerá se der o melhor da sua vida à “fobia” de “fazer coisas” sem dar atenção à razão pela qual as faz. Só envelhecerá se continuar a fazer coisas simplesmente “porque sempre se fez assim”. Só envelhecerá se no meio da actual, e muitas vezes justificada dispersão, enveredar pelo caminho da dissimulação.
O Cristianismo é uma vocação extremamente exigente. E hoje toda a gente está cansada das coisas que não valem nada, das graças baratas. Com vinte séculos de história o nosso Cristianismo não é um Cristianismo envelhecido. Amadurece. E porque maduro, é capaz de rir de si mesmo e ultrapassar as dificuldades.

Padres: servidores do baptismo

Servir o baptismo não é fazer numericamente muitos baptismos. Ser servidor do baptismo dos outros é entregar a vida – o que somos e fazemos - para que a fé dos outros (comunidade crente e os não crentes) conheça mais e melhor a Jesus Cristo. É ajudar na descoberta e no encontro de Jesus, na percepção do seu Espírito, no acolhimento da sua Palavra e da sua novidade de vida. Ser servidor do baptismo de alguém é, através dos “instrumentos adequados”, servir e dinamizar a sua vivência cristã da fé. E a Igreja tem muitos “instrumentos adequados”: procura da vontade de Deus como critério de projecto e leitura do itinerário pessoal; acompanhamento espiritual regular; formação espiritual e teológica permanente; celebração frequente da reconciliação; projecto pessoal de vida; recolecções e retiro; experiência da oração pessoal quotidiana num dinamismo de verdadeiro e real encontro com a Palavra de Deus em Jesus Cristo que se expressa na vitalidade espiritual; harmonia da personalidade expressa na unidade e no sentido da vida; inteligência da fé que se expressa na humildade, na simplicidade, na dimensão contemplativa da vida, no gosto do saber teológico e teologal para uma capacitação da representação ministerial de Cristo; participação diária na oração comunitária como expressão da comunhão na Igreja e da capacidade de vida em Igreja e para a Igreja; participação viva na(s) Eucaristia(s) diária(s) como fundamento e centro do dia, memorial da morte e ressurreição do Senhor Jesus e expressão da total identificação com Ele e com o seu ministério de dar a vida; idoneidade para o ministério diocesano que se manifesta no amor à Igreja local (Diocese), na referência ao Bispo diocesano e seu presbitério, na comunhão sincera com as linhas pastorais de acção e compromisso, da dedicação ao povo de Deus, na obediência responsável, na comunhão madura com as dificuldades; liberdade afectiva que se manifesta na assunção da própria realidade corpórea e no facto de assumir livre e alegremente um caminho real de castidade que se consagrará no celibato como experiência do dom total de si a Deus e à Igreja; docilidade educativa que se manifesta na liberdade individual, na lealdade eclesial, na transparência das relações pessoais; consciência pastoral do ministério e nunca concepção individualista ou honorífica, etc.Trazemos em vasos de barro o tesouro do nosso ministério, para sabermos que um dinamismo tão sublime vem de Deus e não de nós diz S. Paulo aos Coríntios (2 Cor 4, 7). E por isso talvez Santo Agostinho exclama com tanta força: Hei-de reconduzir quem se extravia, hei-de procurar quem anda perdido. Quer queiras quer não, é isso que farei. E ainda que ao procurar-te os espinhos e as silvas me rasguem a pele, passarei pelas veredas mais estreitas, saltarei todas as sebes e correrei por toda a parte, enquanto me der forças o Senhor (Sermão sobre Os Pastores). A fé é impressionantemente realista. É a vida. E compromete a vida. Vamos rezar pelas vocações ( … muitas e santas … como nos habituamos a dizer). Vamos rezar pelos padres.
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[1] Madeleine Delbrel, La joie de croire (Paris: Seuil, 1968) 177.
[2] Cf. Juan Martin VELASCO, La transmission de la fé en la sociedad contemporânea (Santander: Sal Terrae, 2002) 13.
[3] Cf. Ibid.
[4] Cf. J. KESEL, op. cit 10.
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