quarta-feira, julho 25, 2007






Vocações na Igreja
- a confiança contra o medo –




Jesus é que deu “glória” à Cruz
Quem tem uma boa razão pela qual valha a pena dar a sua vida, é sempre capaz de descobrir também uma boa e forte razão para viver. É aqui que a questão do “perder a vida para a ganhar” é, mais uma vez e absolutamente, verdade. E neste horizonte se conjugam e cruzam o dia a dia das pequenas coisas e as opções fundamentais como seu pano de fundo. De facto, não nos será muito fácil encontrar um sentido para a vida se não nos dermos ao trabalho de nos oferecermos à vida para viver. À priori, portanto, a confiança e a objectividade, o optimismo e o realismo são componentes de uma vida boa e feliz.
Jesus Cristo confronta-nos constantemente acerca do sentido da nossa vida. Dietrich Bonhoeffer, numa feliz expressão sua, define Jesus como o “homem para os outros”: a sua vida é marcada pelo dom de si, pelo serviço ao próximo, uma vida dedicada à construção da comunhão. Mas já o Evangelho de Marcos nos surpreende com uma afirmação radical quando afirma de Jesus que Ele fez bem todas as coisas: fez os surdos ouvir e os mudos falar (Mc 7, 37). E Pedro, resumindo, afirma que Jesus passou fazendo o bem, curando e libertando (Act 10, 38).
A primeira comunidade e, depois, toda a tradição cristã compreendeu bem esta bondade de Jesus. Toda a vida de Jesus está centrada no amor. E as primeiras gerações, precisamente porque viram Jesus viver e morrer, puderam acreditar na força do amor que é mais forte do que a morte. É esta vida que se manifesta como verdadeira revelação de Deus: renunciar à auto-suficiência, lavar os pés aos irmãos assumindo a condição de servidor para com o próximo, reconhecer a alteridade daquele que é o próximo ao ponto de o amar com inteligência, favorecer os sentimentos de acolhimento e de amor para com os estranhos ou mesmo os inimigos, e viver o amor e a caridade sempre sob o signo da gratuidade: eis o que é a vida cristã no sentido de uma vida que tem o seu fundamento em Cristo, uma vida segundo a vontade de Deus. Uma vida que não impede a realização do melhor de si, porque dar-se inteiramente pelo outro não entra em conflito ou contradição com o facto de ser autêntico[1].
Não foi, portanto, a cruz que deu glória a Jesus, mas foi Jesus que deu sentido até a um símbolo infamante e terrível como era a cruz[2]. Sem encontrar nesta prática da vida de Cristo (a “pró-existência” no dizer de Dietrich Bonhoeffer) uma boa razão (sentido) pela qual vale a pena dar a nossa vida, não encontraremos, de todo, uma boa e forte razão para viver. E Deus resumir-se-ia a uma ilusão ou criação da nossa imaginação.


Crise … à porta da Terra da Promessa
Creio que a percepção dos aspectos sociais, religiosos, psicológicos … que têm afectado as vocações ao nível dos sacerdotes e religiosos em geral, nos tem feito esquecer algo de fundamental: a fé em Deus, a confiança na sua Sabedoria e na sua Promessa.
Quando os Israelitas chegaram às portas da Terra de Canaã, Moisés enviou os chefes de tribo para explorarem a terra e perceberem se podiam ou não entrar. Ao regressarem, uns relatavam a opulência do país e denunciavam a impossibilidade de entrar nele, outros sentiam as condições adversas como um verdadeiro desafio. Apenas Caleb e Josué se mostraram optimistas por uma razão de fé: O Senhor está connosco, não os temais. O que distinguiu Caleb e Josué não foi tanto a percepção do país, das suas gentes e das suas condições, mas sim a sua confiança em Deus. A grande dificuldade de Israel, naquele momento, era feita da conjugação do medo que nascia da observação da realidade com a falta de confiança em Deus. Os que confiaram entraram, os outros não.
Naquele momento, às portas de Canaã, Israel teve de mudar de paradigma na sua vida: os seus conhecimentos de Canaã não eram inválidos, mas a confiança em Deus tinha que ser maior.
Esta página da Sagrada Escritura pode surgir-nos como um verdadeiro desafio ao realismo e à confiança em Deus. Perspectivar o futuro da situação vocacional na Igreja não pode corresponder apenas a uma previsão linear que se limita a prolongar no tempo o actual estado das coisas. Há que mudar de paradigma, como o Povo de Israel. Nesse sentido, e no meio da mudança dos paradigmas, são as rupturas que são a base da previsão e da acção. Não quaisquer rupturas apenas para serem rupturas, mas as rupturas com o que, à partida, não faz parte possível de nenhuma identidade que tenha como base a fé e a confiança em Deus. No fundo, hoje somos nós que estamos à porta da Terra prometida.


Para melhor muda-se sempre
Dos paradigmas que se têm alterado, os fundamentais dizem respeito ao pensamento e conhecimento, à ecologia e tecnologia, ao multiculturalismo, à família e comunidade humana, ao poder e formas políticas, à experiência religiosa.
Um pouco à maneira do Povo de Israel às portas de Canaã, mas voltado para as cebolas do Egipto, também hoje corremos o risco de “termos feito um óptimo reconhecimento” da terra, mas ficarmos (por medo e falta de confiança) voltados para os tempos em que, nas instituições e nas pessoas, a Igreja tinha uma óptima e imensa imagem pública com imensas vocações (a terra que conhecemos bem). Desde sempre a Igreja, e nela o conjunto das vocações consagradas, viveu num tempo e numa cultura concretos e objectivos. Muitas vezes a alterou, muitas vezes foi determinada e alterada por essa cultura, mas nunca se reduziu a ela. Independentemente das circunstâncias, Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre. E, precisamente nas circunstâncias e com elas, Cristo continua a fazer-se significativo e fundamento para cada tempo. Significa que o fundamento permanece enquanto as circunstâncias podem mudar. Do conceito de fidelidade faz parte a criatividade.
Hoje, novamente, e agora para nós, é o tempo de decidir entrar em Canaã: é o tempo de olhar para o baptismo como uma vida de fé que se inicia; é o tempo de decidir fazer uma catequese que não se resume apenas ou equipara aos anos escolares, mas serve para toda a vida e tem a ver com a vida; é o tempo de não fazer dos sacramentos (primeira comunhão, crisma, etc) exames de admissão à fase seguinte; é o tempo de animar e dinamizar os sacramentos para que, por exemplo, o crisma não seja a pré-reforma da participação na vida da Igreja; é o tempo de se tornar discípulo de Jesus Cristo e identificado com a sua vida; é o tempo de insistir, a propósito e despropósito, na necessidade da formação da fé e da vida cristã; é o tempo de uma fundamentação bíblica e histórico-salvífica da nossa espiritualidade; é o tempo de rezar; é o tempo de olhar para as vocações de consagração como surgindo do chamamento de Deus e da comunidade que vive a sua fé; é o tempo de reconhecer a identidade dos ministérios ordenados como estruturantes da comunidade cristã, mas de perceber que recebem a sua razão de ser do serviço ao povo cristão e do anúncio de Cristo; é o tempo de viver a entrega sacerdotal como radical e permanente; é o tempo de assumir o ministério ordenado como tendo uma responsabilidade imensa na vida dos crentes; é o tempo de cuidar das liturgias, fazendo delas celebração do mistério pascal e de fé e desengordurando-as de tudo o que é supérfluo; é o tempo de assumir a diferença, por identidade cristã, em relação ao que contradiga o Evangelho; é o tempo de refontalizar e “explicar” muita da nossa religiosidade popular; é o tempo de falar da fé e a testemunhar como algo que dá sentido e alegria à vida e não como algo que, localmente, serve para aborrecer; é o tempo de aprender a viver em comunhão; é o tempo da unificação dos esforços; é o tempo de fazer em comunidade uma experiência séria de oração; é o tempo de nos olharmos, não pelo exterior, mas a partir da riqueza interior; é o tempo de deixar de opor a fé e a razão porque ambas são asas do conhecimento; é o tempo de a Igreja se situar diante do mundo como alguém que tem algo de muito bom a dar-lhe; é o tempo de olhar com alegria para aqueles que no sacerdócio, na vida religiosa monástica, activa ou missionária se entregam a Deus e aos outros; etc, etc, etc.
Há tantas coisas possíveis como mudança de paradigma para podermos entrar em Canaã. E mudar de paradigma não é apenas alterar tendências. É uma nova visão e perspectivação das coisas que tem de nascer. Por fidelidade a Cristo e à Igreja. O Concílio Vaticano II possibilitou na Igreja uma imensa e vastíssima reflexão sobre a sua identidade, a sua missão e o seu lugar no mundo. Somos livres de lhe resistir, somos livres para mudar. Mas não é possível perspectivar hoje a Igreja sem ser a partir do mistério de comunhão. Na origem do ser Igreja está uma experiência de fé. Tem de ser formada e, constantemente, alimentada. Sem isso ninguém nos entenderá, ninguém entenderá o que queremos quando rezamos pelas vocações.


p. Emanuel Matos Silva


[1] Enzo BIANCHI, Cristiani nella società (Milano: Rizzoli, 2003) 180.
[2] Cf. Ibid.

Sem comentários: